Rambo - Programado Para Matar (Ted Kotcheff, 1982)
No imaginário do espectador de cinema mais usual, certas
ideias se tornam emblemas generalizantes e irremovíveis, apesar da real feição
que subjaz a essas marcações. Exemplos não faltam. Um Clark Gable vira o
estereótipo do galã canastrão – a despeito do soberbo ator de “Aconteceu
naquela noite” –, um Clint Eastwood, unicamente o matador macho – caso
desprezemos a maneira como problematiza a violência em quase toda sua obra – e
Stanley Kubrick, o epítome do cineasta-cabeça – se ignorarmos sua fase cinquentista
repleta de saborosas pepitas noir. Estereótipos que se consagram pelo tanto de
aderência popular advinda de cenas canônicas (Gable beijando Vivien Leigh,
Dirty Harry empunhando sua Magnum 44, a imagem altamente simbólica do feto em
“2001”, etc.), eclipsando todas as outras leituras que se possa depreender de
suas obras. Mas não existe caso de “olhar atrofiado” (de incongruência absoluta
entre o que vulgarmente se vê e o pertinentemente entrevisto) mais rotineiro do
que aquele que se deposita sobre a imagem de Sylvester Stallone, principalmente
no que diz respeito ao seu “Rambo – Programado para matar”, tradução em si já
completamente maliciosa e mercadológica (no original, “First blood” remete ao
lado que primeiramente foi atacado em uma guerra).
Em primeiro lugar, “First blood” é mais um drama de tinturas
sócio-políticas do que um filme de ação escapista. As cenas movimentadas são
muito mais consequência das fatalidades vividas por John Rambo do que das
cláusulas-base da gramática corriqueira da porrada como condição sine qua non de um filme (como no início
de “Rambo 3”, em que o herói participa de uma luta de bastões sem conexão
alguma com a trama). O roteiro, escrito por Stallone, baseia-se em conhecido
livro do escritor canadense David Morrell, que se enfileira no farto compêndio
de obras que abordavam as sequelas geradas pela guerra do Vietnã,
principalmente no que diz respeito à forma como a América recebia seus jovens
combatentes. Mas a mão de Stallone – junto à de Michael Kozoll, William Sackheim
e do próprio Morrell – soube muito bem dosar o verniz politizado do original,
publicado em 1972, em prol de uma abordagem mais psicológica e tributária dos
dramas montanheses dos anos 70 (“Amargo pesadelo”, de John Boorman, “Mais forte
que a vingança”, de Sidney Pollack, etc.).
Aliás, interessante observar que a trama de “First blood” se assemelha
muito à de “Perseguição mortal”, com Charles Bronson e Lee Marvin, realizado
dois anos antes, sobre um homem que é injustamente perseguido por um grupo de
policiais na densidão da floresta.
“First blood” se inicia com uma tomada extremamente
elucidativa quanto ao desenrolar da trama. John Rambo desce uma idílica colina
em direção à casa de um amigo, também ex-combatente, e em sua fisionomia
transparece toda leveza e expectativa de alguém que espera reiniciar seu
contato com o mundo através daquela reaproximação. A bela fotografia de Andrew
Laszlo ramifica a face auspiciosa do protagonista na frugalidade edênica do céu
azulado, refletido na luminosidade do pequeno rio que circunda o local. Ao
avistar uma senhora estendendo roupa, Rambo a interpela e recebe a triste
notícia de que seu amigo voltou da guerra com um câncer que acabaria por
matá-lo, não sem antes corroê-lo até que “pudéssemos levá-lo no colo de tão
magro que ficou”. É um momento extremamente emblemático e divisor da ótica sob
a qual John se relacionará com o mundo, agora completamente isenta do único fio
que o reconduziria àquela humanidade que a guerra removeu. Importante atentar
para o minucioso naturalismo de Stallone ao tomar conhecimento de que seu
“amigo não está mais aqui”. O personagem se nutre de uma inocência quase
infantil que se evidencia no gestual de alegria incontida – a mão tremelicante
tirando uma foto antiga do bolso da jaqueta, a fala levemente desordenada e
ininterrupta, o medo de não agradar, etc. – com que aborda a velha senhora. E a
essa leve frustração de quem simplesmente chegou em horário inadequado –
entrevista na sutileza de seu sorriso amarelo ao perguntar inocentemente “puxa,
que horas ele volta?” – é brutalmente rompida com a fatídica notícia da morte
do amigo, dando lugar a um niilismo imediato e quase insuportável que o
perseguirá por toda a narrativa (quiçá por toda a vida). Sem exagero algum, um
dos momentos mais cortantes de toda a história do cinema.
O Rambo que se vê caminhando desamparadamente numa estrada
fria e acinzentada torna-se o antípoda perfeito do que representara minutos
antes. Sua solidão excruciante agora não oferece outras possibilidades senão a
de engolfá-lo em uma redoma cada vez mais vedada. Todo o
ambiente em torno de si parece acompanhar seu esvaziamento absoluto de
expectativas, entrelaçando-se univocamente. E mais uma vez vale a menção à
soberba atuação de Stallone. Ao remover de seus traços fisionômicos todos os
aclives e declives de alguém que vive sob o trâmite comum das emoções
intermitentes (uma das prerrogativas do método de Pacino e Brando, por
exemplo), o ator se instala num contínuo vácuo existencial que o projeta para
além do mundo físico, como numa espécie de catatonia. Esse movimento de
retração se assemelha ao estado de laconismo exacerbado do personagem Harmônica,
brilhantemente interpretado por Charles Bronson em “Era uma vez no Oeste”, de
Sergio Leone. Só que, enquanto Harmônica é lacônico por deter uma única ideia
em sua mente – a vingança – Rambo entra numa esfera de entorpecimento que o
esvazia por completo. Como um animal que vive para comer e dormir, só conseguirá
sair dessa espécie de transe através da dor, e é isso o que ele encontra na
figura do xerife Teasler, interpretado por Brian Dennehy (que já contracenara
com Sly no soberbo “FIST”), quando chega a uma pequena cidade em busca de
comida. Interditado por Teasler, o passivo e desvitalizado John é conduzido até
o pequeno distrito policial, e lá é humilhado de várias formas. O ambiente,
composto por figuras que esbarram nos lugares-comuns da rotina daqueles que
passam mais tempo sentados em suas mesas do que efetivamente nas ruas à cata de
criminosos (trata-se de uma cidadezinha sem grandes proporções até nesse
sentido), é um dado que faz pressupor a sanha vingativa – sem nítidas
justificativas – com que desfazem de John Rambo ao descobrirem que se trata de
um ex-combatente. Daí o filme sutilmente enviesar o psicológico daqueles que,
destituídos de um modus operandi calcado
nos méritos mais perceptivelmente honrosos, amplificam seu recalque ao máximo
quando se deparam com a possibilidade de exercitar algum poder. E nada
oferecerá mais enlevo a esses artífices da mediocridade do que subjugar um
homem que detenha todas aquelas qualidades.
A sequência em que John é aviltado no distrito demarca os
polos entre os quais o protagonista configura sua psique. Como já dito, o
estado de torpor de Rambo advinde do esvaziamento de toda e qualquer capacidade
de prospecção que o pós-guerra lhe ofertou. Como um animal acuado, é preciso
que a dor ative seu poder de ação novamente, amputado que está de qualquer
forma de arroubo. Aparentemente, para John tanto fez como tanto faz estar ali.
Sua inércia só será desativada quando algum daqueles humilhantes expedientes
indiretamente se associar ao núcleo de seus traumas mais primais. John fora
espancado e xingado, mas é o fato de ter uma navalha sobre seu rosto – quando
os policiais tentam barbeá-lo – que ativará sua fúria mais biliar, pois o
remete imediatamente ao compêndio de torturas que passara na guerra. O olhar de
Stallone ao ter a lâmina próxima de sua face se aloja brilhantemente na tênue
linha entre o sono e a vigília, pois, afora seus olhos arregaçados, toda a sua
fisionomia permanece irremovível. O corte abrupto dessa cena com a rememoração
de uma faca rasgando seu peito por vietcongues – seguido de um grito primal
extremamente perturbador – são imagens que se tornam indeléveis pelo choque cromático
gerado por seu contraste. A fotografia burocraticamente azulada do distrito é
fissurada de imediato pelo vermelho purgante da masmorra subterrânea onde John
está sendo castigado. Poucas vezes a equivalência entre os trabalhos de um ator
com os de direção, fotografia e edição estiveram tão uniformemente congruentes
no que tange ao poder de choque das imagens. Mesmo porque, caso comparemos
“First blood” com outros filmes de Kotcheff, perceberemos o diretor altamente
eficiente, mas nunca às raias do brilhante, que ele é. A genialidade de “First
blood” se deve, antes de tudo, ao trabalho conjunto.
O Rambo que agora se vê é uma fera ensandecida em busca de
sobrevivência. A perfeita expressão corporal de Stallone é fator preponderante
na sequência do revide, consciente que é do potencial de adesão de certos
enquadramentos. Como no instante em que pressiona com as mãos a cabeça de um
dos policiais contra as grades, destilando uma fúria tão primitivamente
incontida que chega a distorcer sua face, como um animal esfomeado que agarra
um pedaço de carne e não sabe por onde começar. John vomita uma desforra presa
há anos. Só depois de saciar esse frenesi inicial, consegue driblar com certo
virtuosismo todo o departamento.
Então começa uma verdadeira caçada humana pela floresta,
instaurando no filme elementos não só do cinema de ação, mas também do suspense
– quiçá terror – montanhês. A natureza exerce um papel tão opressor quanto a de
“Amargo pesadelo”, como fica perceptível na sequência em que os policiais e
seus cães são abatidos um por um, como que engolfados por aquela estranha força
primitiva. A tomada extremamente seca e entrevada recrudesce a atmosfera
insuportavelmente opressiva do ambiente, só que agora sob a perspectiva dos
policiais. Essa desestabilização das forças é o elemento mais constante no
filme, haja vista que é a constatação de John ser infinitamente mais bem
treinado que aqueles tiras (acostumados a solucionar pequenos furtos), que faz exacerbar
o orgulho do xerife Teasler, um nítido filho da América conservadora,
republicana, aquela que procura alocar cada qual em seu perímetro mais circunscrito.
Lugar de vagabundo não é em cidadezinha-família, segundo seus preceitos. Apesar
de, no fundo, seu ódio tributar muito mais daquele inoportuno sentimento de
recalque já mencionado, aquele oriundo do desalojamento de um poder proveniente
antes de tudo da acomodação advinda de um microcosmo social passivo e
estagnado. Rambo simboliza a rachadura quando se mostra superior, e isso
desestabiliza por completo a gramática com a qual Teasler institui seus já
enraizados poderes.
A aparição do coronel Trautman (Richard Creena, ator
subestimado, no papel que o encapsulou por toda a vida) representa a mais
desesperadora tentativa de reajustar as forças em desordem, afinal sua patente
é superior à de John, além do fato de agora estar vinculado ao mundo da
burocracia governamental. Para Rambo, no entanto, Trautman continua sendo o
único que compreenderá suas atitudes, pois ambos compartilham da mesma filiação
ética. O diálogo que o coronel trava com John por headphone no momento em que
este se encontra abaixo da superfície da terra, soterrado por incontáveis
destroços, é uma das cenas mais lancinantes do filme. Depois de muito tentar a
interlocução, Trautman enuncia uma série de codinomes de guerra (“Águia para
Falcão, câmbio....”) que ativarão o núcleo mais sanguíneo da provavelmente
única boa recordação que John possui de sua vida. O susto tomado por ele, no
instante em que ouve aquelas frases tão familiares, é um efêmero lampejo de uma
esperança reativada. O olhar atônito de Stallone, como uma criança que é
surpreendida por um presente de fim de ano, é mais uma vez digno de menção. Mas
imediatamente a sombria realidade volta e agora é um macambúzio e destroçado
Rambo quem responde, no instante em que o coronel enfileira nomes de
ex-combatentes: “estão todos mortos, senhor.” Sua voz aquebrantada parece
emergir da entranha mais profunda tanto de seu inferno particular quanto de uma
América completamente hipócrita quanto às suas premissas mais ególatras e
moralizantes. A voz de Rambo é a de uma pedra não lapidada consciente de seu
inevitável fim. Não há uma nesga sequer de esperança em sua elocução.
Os desdobramentos da narrativa seguem para o inevitável
desfecho em que Rambo se “vinga” da cidade que tanto o imolou. Um detalhe já
observado pela fortuna crítica do filme é o de que Rambo não mata ninguém aqui
(não propositalmente), pois quando chega à cidade e a destrói quase por
inteira, é contra os parâmetros civilizacionais aos quais ele não mais pertence
que o combatente canaliza sua fúria. Ele destrói o posto de gasolina (que mais
adiante veremos se tratar de uma alegoria de seu fracasso enquanto civil), todo
o distrito policial, a loja de armamentos e outros símbolos da América
conservadora. Interessante observarmos que os problemas de Rambo se iniciam no
momento em que ele entra na cidade, como se esta já representasse uma instância
personificada que defenestra tudo aquilo que não corresponde aos seus códigos.
A vida civilizatória animalizou John Rambo e não há espaço para animais não
domesticados na cidade, ou seja, a América que o criou é a mesma que
bastardamente o regurgita. Um possível diálogo pode ser estabelecido com o
belíssimo e icônico final de “Rastros de ódio”, obra-prima do grande John Ford,
em que o personagem de John Wayne, um pistoleiro embrutecido que tem ódio
mortal de índios e descendentes, entrega sã e salva a jovem que fora
sequestrada por indígenas na infância (e, consequentemente, transformada em um
deles). Ethan (Wayne) a entrega à família sem, no entanto, entrar em sua casa,
permanecendo à porta. Esta se fecha lentamente e toda a tela escurece. Ele sabe
que seu espaço fronteiriço está naquela exata linha de entrada da casa, e a
assunção de que não pertence àquele mundo o faz retornar ao deserto, seu
verdadeiro lugar. O pistoleiro tem ciência da delimitação de seu espaço já em
sua alvorada, mas do qual não poderá nunca se dissociar (algo antiteticamente
similar à decisão do supracitado personagem Harmônica em “Era uma vez no
Oeste”, que, a despeito da ciência que possui de sua inadequação à civilização
então emergente, opta por redirecionar seu cavalo em direção oposta ao deserto
– e tudo o que ele representa – ele quer a vida, afinal).
A sequência final é daquelas que nos fazem questionar a credibilidade
da premiação do Oscar de melhor ator, já que Stallone merecia ao menos entrar
na disputa (o justo vencedor daquele ano foi Henry Fonda por “Num lago
dourado”, póstumo). Acuado em uma loja, com centenas de policiais do lado de
fora e Trautman tentando persuadi-lo para que interrompa sua ação, Rambo
explode num rompante de desespero absolutamente primal, revelador de sua psique
completamente desorientada. A efígie do homem de olhar estático dá lugar à
fragilidade de um animal agora confuso, que chora e sangra, vomitando como uma
criança os deploráveis entulhos fincados em sua memória. Seu extenso e trôpego
monólogo diante do coronel sobre todas as intempéries que passou e presenciou
(“na guerra eu podia pilotar um tanque, aqui fora eu não consigo emprego nem em
um posto de gasolina!”) faz uma varredura pungente da montoeira de fraturas
pilhadas em seus “porões” (para mencionar uma metáfora usada pelo próprio Sly
em “Rocky Balboa”, de 2006). A débil imagem do ex-combatente chorando efusivamente
nos braços de seu coronel, agarrando-o como um filhote desamparado, é o
antípoda do otimismo revitalizador que a era Reagan já propagava. Não há uma
centelha do tal herói patriótico que se tornaria o emblema de Rambo sob olhares
preconceituosos e, infelizmente, absorvidos por Stallone em seus filmes
posteriores (Rocky 4” e “Rambo 2” integram com exatidão esse juízo, a despeito
de suas qualidades).
“First blood” possui poucas características do cinema de
ação oitentista. O colorido que supostamente emularia o frescor daquela década
é ceifado logo na cena inicial do filme, como se a própria obra nos
posicionasse num ângulo mais verossímil. Ao final, a imagem de um Rambo mais
uma vez demovido de impulso, algemado sob o pálido breu da noite citadina em
nada se assemelha àquele da ensolarada trilha por onde descera confiante. A
bela e melancólica trilha de Jerry Goldsmith complementa com perfeição esse que
é um dos melhores e mais emblemáticos estudos já feitos sobre a solidão humana.
Me sinto obrigado a rever esta obra após esse texto fantástico.
ResponderExcluirValeu, grande Wellington! Reveja sim!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirExcelente filme de ação,ótimos personagens. Rambo funciona melhor como um antagonista atormentado e desiludido. A ambientação e trilha sonora são sensacionais .
ResponderExcluirGosto das sequências, mas talvez o final original com o Rambo morrendo se encaixasse melhor com o proposto ali
https://youtu.be/jp1mdSQ4BfI