quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Impacto Fulminante (Clint Eastwood, 1983)


Sete anos depois da sua última aparição no irregular “Sem Medo da Morte”, o mito Clint Eastwood retorna àquele que sempre foi o pai de todos os tiras durões, o precursor do policial temido e impiedoso: ele volta a encarnar Harry Callahan, o “sujo Harry” como em seu universo ele é conhecido.


Com intervalos médios de 3 anos fazendo o personagem, desde o já clássico “Perseguidor Implacável” de 1971, passando pelo eficiente “Magnum 44” de 1973, até “Sem Medo da Morte” de 1976”, Eastwood dessa vez assume a direção e entrega a segunda melhor aventura do personagem. “Impacto Fulminante” ganha de “Magnum 44” pelo seu teor mais violento, e por uma surpreendente e bem conduzida história paralela à do protagonista, que consegue dar ainda mais escopo à narrativa e, principalmente, ao seu triunfante desfecho.
Dessa vez, Callahan é mandado para fora de São Francisco por ordens de seu Tenente para evitar mais embaraços e polêmicas ao seu método nada convencional de agir contra a bandidagem. E isso fica escancarado nos 15 melhores minutos iniciais da franquia, onde vemos o personagem ser embalsado em toda a sua retaliação e implacabilidade contra os criminosos. Nas mãos de outro diretor, talvez, essa “reapresentação” do protagonista para o grande público tivesse sido mais rápida e diluída para se adentrar logo na trama principal, mas Eastwood é sagaz e sabe que depois de 7 anos longe de seu icônico policial, os fãs avidamente gostariam – e precisariam! – de uma entrada gloriosa aos moldes da essência original do personagem. Aquela que foi forjada na crueza e na truculência de forma magistral pelo lendário Don Siegel, e que Eastwood aqui, consegue trazer de volta à tona. Não por acaso, Harry Callahan surge carrancudo na tela andando em plano americano com seu característico paletó e aqueles mesmos óculos escuros que o personagem usa em “Perseguidor Implacável”.
Exemplo de toda essa ira contida no personagem é mostrado logo nessa ótima abertura do filme, onde temos um playboyzinho sendo absolvido pela Corte por falta de provas. Somado a isso, o réu, mais culpado do que nunca, ironiza e debocha de Harry que se senta numa das cadeiras do Tribunal como espectador, e tem que “engolir a seco” toda a comemoração do bandido. Mas é claro que quem conhece o personagem, sabe que isso não vai ficar barato. E é onde vemos esse acúmulo de ira explodir dentro do elevador do prédio da Justiça, quando Harry pega o playboy pelos colarinhos e diz que “Lugar de merda é no lixo. Pois se deixar no chão, ela seca, e se pisar em cima, ela fede ainda mais”. Jogando o mauricinho de volta ao canto do elevador como se fosse, de fato, uma merda. E isso é exatamente a primeira frase do personagem no filme! E é incrível que esses “quotes” de efeito do protagonista, estão ainda mais ásperos, mordazes e tão agressivos quanto um soco na cara. Aliás, arrisco em dizer que está aí um elemento de “Impacto Fulminante” que é colocado um pouco à frente do clássico filme de 71: todas as rápidas frases de Harry estão ainda mais sujas do que na obra-prima de Siegel. Eastwood entende que Harry Callahan sempre foi implacável, duro e cruel contra seus inimigos, e o diretor/ator vai explorar isso de forma acentuada ao longo das quase 2 horas que o filme tem. Pois ele sabe também que a figura mítica do personagem estará sendo avaliada de forma contundente por todos os fãs de mais de uma década de idolatração. Logo, as frases de efeito ajudam a formar essa aura imponente do sujo Harry.
“Impacto Fulminante” ganha ainda, pela primeira vez, uma ousada adesão para o público feminino: agora, a história principal segue a vingança de uma mulher, que espancada e violentada juntamente de sua irmã mais nova, prometeu a si mesma de matar os seus algozes, um a um. É claro que isso se juntará à trama na qual Harry foi colocado. O roteiro escrito por Joseph Stinson é de longe um dos mais bem encaixados de toda a franquia, pois se por um lado temos uma narrativa de vingança e até de suspense que acompanha a personagem vingativa Jennifer Spencer (a competente Sondra Locke), os fãs continuam tendo toda a violência e as meias-palavras do taciturno Callahan. 
Uma cena fortemente elaborada em cima da truculenta maneira de agir do anti-herói, está no assalto que acontece disfarçadamente dentro da cafeteria que Callahan sempre pede o café. Ao perceber que a garçonete entupiu seu copo de açúcar, ele volta para reclamar; mas é óbvio que Callahan já havia percebido que tinha algo de errado acontecendo no local. E o que vemos em seguida, é para todo e qualquer admirador do personagem aplaudir de pé. Uma cena que, inclusive, referencia o original de Don Siegel, uma vez que Eastwood coloca três marginais baleados no chão sem piedade e acaba dizendo a famosa “Go ahead, make my day!”. Mas é bacana perceber como o roteiro de Stinson, emoldura o ar miticamente heroico e implacável de Harry Callahan, quando o mesmo volta para reclamar do café. Eastwood é esperto em notar que o policial nesse momento está sendo usado como uma figura quase onipresente, um Deus da Punição colocado naquela cafeteria para não prender os marginais, e sim, mata-los. E eis que, quando a câmera rapidamente foca no bandido se espantando ao vê-lo já no interior da cafeteria, uma trilha típica de imponência surge rapidamente para logo se silenciar... já que Callahan iria disparar um de seus melhores comentários: “Todo dia, nesses quase 10 anos que Loretta me serve o café, ela nunca errou a mão. Mas hoje, Loretta me serviu um café frio e tão doce que só foi possível cuspi-lo. Mas logo vejo que Loretta fez isso de propósito, para que eu voltasse aqui e encontrasse vocês... por isso, é melhor largarem as armas agora!”. A frase é dita por Eastwood com uma frieza e ao mesmo tempo uma ironia que só mesmo o ator consegue formular. Uma calma perene que, nitidamente, atinge o assaltante com mais danos do que um tiro. E é engraçado que para um filme de 1983, início dos anos 80, a frase combinaria com qualquer personagem de filmes modernos do Tarantino, onde a jocosidade verbal antes dos disparos fatais, quase sempre acontece. Claro que essas ironias textuais ditas por protagonistas “fodões” iriam se tornar mais comum no decorrer da década com os Slys e os Arnolds da vida... mas é inegável que com Eastwood pronunciando esses letrados sarcasmos, a imponência mesclada à elegância de seu porte, faria o sujo Harry se tornar ainda mais memorável. Basta dizer que, em determinada sequência, Callahan entra na festa de casamento da filha de um mafioso, e simplesmente faz o figurão ter um infarto apenas com suas ácidas e escancaradas palavras; junto ao roteiro de Stinson, é a certeza de Eastwood em mostrar pro espectador que a personalidade de Harry não é só feito pelo “atirar primeiro, e perguntar depois”. Mas sim, por constituir uma persona que consegue eliminar seus inimigos com as verdades que ele sempre atirou. E, caso muitos não lembrem, ele faz a mesma coisa com um advogado público e com seu chefe maior, no primeiro filme da série, quando diz com todos seus pormenores, que não conseguiu salvar uma vítima do Scorpio por causa das incompetentes e travadas burocracias da Justiça. Aqui, no entanto, ele vai à forra... e passa por cima dessas mesmas burocracias e liquida com um criminoso em potencial atirando sobre ele – e de sua família! – insultos completamente respaldados com a verdade!
Harry Callahan merece admiração justamente por essas atitudes. Ele é sim um policial durão, sisudo e completamente de “pavio curto”, na prontidão de mandar qualquer marginal pro inferno, mas o roteiro de Joseph Stinson com a habilidade de Clint na direção, revelam cada detalhe dessa construção de caráter; uma formação de personagem que mesmo desgostoso com todas as mazelas da sociedade, ainda possui uma dignidade em querer limpar as sujeiras que encontra pelo caminho. Seja na bala, ou em suas igualmente mortais palavras. E é interessante vermos como a personagem Jennifer Spencer, que também quer se vingar de alguma forma dessa sociedade – ou de um específico grupo social – podre, se “junta” à Callahan. Numa conversa, até meio que descontraída, na mesa de um bar, ambos têm uma conversa à respeito da sociedade e das leis, do que cada um faz, e do que estão dispostos a fazer. Num rompante instintivo de raiva, a vitimada moça deixa escapar que a Justiça é falha e, que por isso, alguns meios radicais como o “olho por olho”, às vezes, é bem vindo. Ela exemplifica rapidamente delitos corriqueiros que se não consertados, poderão no futuro, eclodir numa avalanche incontrolável. Ela reconhece, acima de tudo, que Harry Callahan é um “mal necessário” dentro dessa questão, o que surpreende o policial. Mas ela diz que poucos ainda agem como ele, e que por isso, ele será uma espécie em extinção. Não demora muito para o espectador perceber que, essa talvez, tenha sido a cantada ideal que alguém poderia dar em Harry... afinal, ele nunca foi um homem de pragmatismos românticos, mas se encontrasse uma mulher que identificasse e elogiasse diretamente os seus modos de agir, ele estaria feliz. E é aí que Eastwood, discretamente, mostra quase que pela primeira vez, Callahan abrir um leve sorriso. Não aqueles sorrisos de ironia ou de instigação para algum desafeto, mas dessa vez, para alguém que assim como ele, compartilha dos mesmos pensamentos e ideais.
Dito isso, a perseguição vingativa de Jennifer Spencer se torna ainda mais intensa à partir do terceiro e último ato, mostrando a bela moça conseguindo eliminar um a um dos seus violentadores – inclusive, no grupo-alvo de Spencer, há uma lésbica valentona tão asquerosa ou até mais do que alguns dos selvagens estupradores. Callahan, paralelamente em sua investigação, se aproxima de achar a verdade e já suspeita de que a matadora que vem eliminando os homens da localidade é a mesma mocinha que ele se deslumbrou. Vale ressaltar aí desse deslumbre de Harry, a primeira “cena de cama” do protagonista... nunca vista em nenhum outro filme da série, é aqui, que vemos de forma inédita, Harry se deitando com uma mulher. Isso fica ainda mais claro para o espectador, quando o roteiro de Joseph Stinson deixa a pista de que Jennifer Spencer pode ser realmente a “mulher perfeita” para Callahan, ainda que isso implique em várias questões que o sujo Harry teria que abdicar. Mas vale também lembrar que em uma cena anterior dessa entrega para a mocinha, o policial havia conversado com um amigo sobre a possibilidade de largar a Polícia de São Francisco, e que mesmo com ressalvas do amigo (“Impossível, afinal, é só isso que você sabe fazer: ser um policial”, nas palavras do parceiro Horace), essa ideia não fica muito longe da realização, uma vez que Callahan sempre foi criticado pelos seus métodos policiais. E por isso, é fascinante que ele diga para Jennifer, que as autoridades para as quais ele serve, “querem sempre resultados, mas não dão os meios para você agir”, numa compreensível indulgência de como ele encara seus próprios atos.

Ao final do filme, toda essa “tour de force” do personagem vem numa carga dramática atípica dentro da franquia. Enquanto Jennifer Spencer compra o parque na qual ela e sua irmã foram violentadas, na intenção de criar ali o derradeiro final para seus inimigos, Callahan é espancado e jogado ao mar pelos três últimos bandidos estupradores de Spencer. Como dito, o drama se acumula e se intensifica tanto na passagem de Harry sendo agora vitimado, quanto na de Jennifer sendo descoberta e pega pelos homens que ela deseja se vingar. Mas o roteiro de Stinson é esperto e consegue deixar o espectador ainda mais agoniado no momento em que ele coloca Callahan caindo ao mar depois do espancamento; temos a certeza que o anti-herói não morrerá, mas não temos a mínima ideia de que ele conseguirá a tempo salvar Jennifer Spencer, que agora está sendo ameaçada de ser estuprada pela segunda vez. 
O roteiro de Stinson provoca ainda mais o espectador pelo sadismo na perseguição dos três bandidos à mocinha, com direito a socos e tapas cruéis em Jennifer. A correria toda acontece dentro do parque em que ela havia comprado para justamente se vingar dos criminosos, mas infelizmente, eles que estão em maior número e são mais fortes, conseguem pegá-la... quando um deles diz assustado: “Cara, olha lá!!!”. Depois dessa exclamação espantada do bandido, é onde a emoção do espectador salta pela boca. Justamente porque entra o poder da direção de Eastwood, junto de sua presença única em cena. O espectador olha junto com os bandidos uma figura na contraluz, posicionada de longe em pé, com uma Magnum na mão. Estático, frio e posicionado como se fosse a personificação exata da morte. E Eastwood tem consciência disso! Ao colocar o espectador sem ver o rosto daquele homem, tal como todos os outros personagens, incluindo Jennifer, mesmo que tenhamos a certeza de que se trata de Callahan, a figura é macabra e representa algo realmente mortal. Repare como a trilha do mestre Lalo Schifrin, solta uns grunhidos e sussurros como algo saindo de um breu fantasmagórico. Eastwood aproveita o cenário aberto do parque, e complementa aquela imagem na penumbra como uma assombração... ainda que esperançosa para Jennifer, mas completamente medonha para os bandidos. E ao olharmos como fica o pavor estampado no semblante do líder do bando, fica ainda mais evidente a satisfação com que Eastwood e o tema de Shifrin evocam... aos primeiros passos de Callahan na direção dos criminosos, e dentro das marcações da música que agora parece dar uma batida como a de um coração acelerando, aquele policial é exatamente a imagem da morte e coloca-lo sem o rosto e na total sombra, é como nos lembrar que a caracterização imagética da Morte personificada, é encapuzada, sem vermos o rosto. E mais um detalhe: enquanto que essa Morte figurativa carrega uma foice, aqui, Callahan carrega seu instrumento mais mortal: a Magnum 44. Emoção mais que perfeita alcançada por um momento da direção brilhante de Clint Eastwood. Afinal, todos se espantam. E o espectador sabe em definitivo, que aquela imagem que caminha não está ali mais para prende-los, e sim, para executar todos. É, sim, a morte personificada em forma de homem. Este, pra mim, é o verdadeiro título do filme: o impacto fulminante é Harry Callahan!
E como sabemos de toda a experiência de Eastwood como ator que já havia trabalhado em westerns consagrados de Sergio Leone, particularmente, acho aqui a primeira investida de homenagem – ainda que meio sutil ou mesmo disfarçada – de um enquadramento do velho cineasta italiano. Repare como Callahan vai se aproximando dos três homens e de como cada um se posiciona em cada canto... algo como bem visto em quase todos os duelos de cowboys de Leone. Sendo que aqui, o cenário arenoso dá lugar ao escuro de um parque fechado. E os pistoleiros são estupradores que detém uma mocinha como refém. E, claro, Callahan é o estranho sem nome que sem mostrar a face, assume o lugar da morte e elimina os dois crápulas. O último, sendo o líder, certamente merecia um final mais condizente com sua megalomania tirânica; e é quando vemos Callahan persegui-lo já dentro da forma de como ele perseguiu Scorpio, ao final de Perseguidor Implacável... inclusive, a “psicopatia histérica” desse estuprador remete aos risos nervosos e a insanidade do antigo vilão Andrew Robinson. Só que troca-se aqui aquela colina numa empreiteira de pedras, por um aclive dentro de um trilho de montanha russa. Mas o final impiedoso é o mesmo. Sendo que aqui, não só Callahan mata o bandido estuprador, como Jennifer Spencer completa sua vingança. Percebemos que quando Harry o elimina com uns 3 tirambaços no peito, o bandido despenca de cima da montanha russa diretamente para o mesmo carrossel em que Jennifer tinha ativado quando entrou no parque... o mesmo carrossel que ela havia tentado se esconder dos meliantes, é o mesmo carrossel que servirá de jazida para o último estuprador. E fica ainda ironia de que, sendo um estuprador, ele morreu com um chifre enfiado dentro dele! O chifre do unicórnio, um dos adereços que compunham o carrossel de Jennifer. No final, ambos o mataram.
Cru, violento e com elementos resgatados por Eastwood, “Impacto Fulminante” se torna uma das melhores aventuras do personagem Dirty Harry. Temos a certeza de que “Perseguidor Impalcável” fez o seu melhor rebento, e que depois daquela obra-prima de Don Siegel, é aqui que Clint mostra o dever de casa completo e finalizado. Um fim tão merecedor como o desfecho de vermos Callahan “salvar” Jennifer da prisão. Afinal, a arma dos assassinatos que ela cometia, acaba sendo direcionada para o líder dos estupradores. E assim, ele dá a sua “prova de amor” a Jennifer, revelada em seu melhor senso de justiça. Tal como ela disse na mesa de um bar, que ele seria uma espécie em extinção, ele prova a ela que, com certeza será.

Um comentário:

  1. "E fica ainda ironia de que, sendo um estuprador, ele morreu com um chifre enfiado dentro dele! O chifre do unicórnio, um dos adereços que compunham o carrossel de Jennifer. No final, ambos o mataram."

    O estuprador morre com um chifre (horn em inglês) o atravessando ao meio. Os semiologistas piram! hehe

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