Dupla explosiva (Marcello Fondato, 1974)
Poucos
filmes transitam no imaginário afetivo com tanta veemência para os que tiveram
acesso à fase de ouro das sessões da tarde quanto “Dupla explosiva”, gema
deliciosamente anárquica que sintetiza o melhor da vasta filmografia de Bud
Spencer e Terence Hill: divergência de personas, humor caipira e nonsense,
vilões cretinos e caricatos, sequências gastronômicas, trilha sonora memorável
e, óbvio, longas e inverossímeis cenas de pancadaria. Todos esses quesitos são
cumpridos com maestria absoluta aqui, sem deixar brechas para gorduras.
Na
trama, Hill é o debochado Kid, e Bud, o brutamontes Ben, que numa corrida de
rally (muito características das chamadas “comédias proletárias” setentistas),
acabam empatando e tendo que disputar entre si o prêmio, um cobiçado “bugre
vermelho com capota amarela” (as aspas aqui ressaltam o poder afetivo com que o
dito sintagma penetrou no imaginário pop daqueles que, à mera menção do filme,
imediatamente completavam: “aquele do bugre vermelho com capota amarela, né?”).
Então resolvem competir isoladamente num campeonato de salsichas com cerveja:
quem aguentar comer mais levará o dito bugre vermelho com capota amarela para
casa.
A
partir daí, é um desfile de sequências icônicas que não acaba mais, a começar
pelo bando de mafiosos que destroça o bar enquanto a dupla, concentrada única e
exclusivamente nas salsichas e nas cervejas, irreleva completamente tudo o que
ocorre ao redor: cadeiras voando, vidros quebrando, mesas partindo, pessoas
sendo esmurradas, etc. Como não se lembrar do pedido de um milk shake que
Terence faz ao barman, ao que Bud interpela: “ei, isso não está nas regras!” e
Hill, com aquele saboroso ar de caipira falsamente ingênuo manda: “eu sei, mas
é que faz bem pra azia! Experimenta só!”. Ou do instante em que Bud se levanta
de sua mesa e imediatamente uma cadeira atravessa o espaço em que estava, ao
que Hill pergunta: “vc sabia que iam atirar a cadeira aí?” e Bud: “não, a
fumaça do cigarro tava me incomodando”. Tudo muito assim, deliciosamente leve e
camp, desaforado e ingênuo. Ambos só começam a dar alguma importância para o
evento em questão quando os malfeitores destroçam seu querido bugre, o que será
a mola propulsora para o desfile de ações tomadas pela dupla em busca de
reparação.
Pode-se
mencionar inúmeras outras sequências que o tempo se encarregou de fincar em
nosso imaginário afetivo (e as inúmeras reprises do filme nos anos 80 são em
parte responsáveis por sua perene aderência), como a batalha de motociclismo –
cena essa em que Fondato faz uma pequena homenagem ao passado até então recente
de Hill como herói de westerns spaguettis, dando closes à moda Leone nos olhos
dos adversários, mas hilariamente cortada pela aparição abrupta de Bud montado
numa pequena moto ao som de “Dunny Buggy”, de Oliver Onions (dupla formada
pelos irmãos Guido e Maurizio de Angelis, colaboradores oficiais da dupla); a
inesquecível luta na academia do circo, em que ambos exercitam todo o manancial
cênico em torno do qual sua mítica foi criada: os “telephone hands” e socos
verticais de Bud, as acrobacias e o malabarismo com boliches de Terence, etc.;
e finalmente, a cena que perdurará nos anais do humor pastelão para todo o
sempre: os la-la-lás cantarolados por um
coral, e Bud, completamente desentoado, estragando o ensaio enquanto um franco-atirador
mira no gorducho, para desespero de Terence, que tenta de todas as formas avisar
ao amigo do perigo que corre.
Não
há como destacar um momento específico do filme. Sergio Leone elevou essa
prerrogativa – a secção do todo em partes quase autônomas – ao seu estatuto
mais nobre. Mas estamos falando de uma obra pop. E uma das bases do pop é a
fixidez imagética sem compromisso com texturas pretensiosamente subliminares,
isenta de aparatos metalinguísticos que liquefaçam seu poder de aderência. Por
mais que se diga o contrário, Andy Warhol não é pop, e sim um escrutinador do
pop. O mesmo com Tarantino. Todos eles se munem dessa base irrevogavelmente
atrelada ao imaginário coletivo (as comédias proletárias, os filmes de artes
marciais B, o western italiano, etc.) para transubstanciar suas camadas de
superfície em algo mais. Até o grão-mestre da pavonice cinematográfica Godard
quis brincar de noir em seu “Detetive”, de 84. Na verdade, todos invejam não conseguir
atingir aquela carga empírica, direta e tipificada dos filmes de Hill e Spencer.
Algo como a diferença entre o frequentador da festa e o repórter que a cobre.
Ou o adulto, danosamente consciente de si, que inveja a falta de consciência
das crianças. Pérolas como “Dupla explosiva” são puras, solares – porque desativadas
de qualquer outro intento se não a diversão passiva – e completamente
inconscientes de sua base referencial.
Aqui
a imagem de superfície detém um poder de adesão infinitamente superior ao de
qualquer possível camada subjacente. Em uma obra do Antonioni, por exemplo, uma
explosão não é apenas uma explosão: é necessário compreendê-la, metaforizá-la,
etc. Em Hill e Spencer, uma explosão é apenas uma explosão, e isso não é
demérito algum, pois a renúncia a qualquer proposta subliminar eleva a imagem
em si a um estatuto de importância que não se diluirá polissemicamente. Daí
“Dupla explosiva” ser um filme composto por imagens tão icônicas. Daí muito
mais citarmos essas cenas em rodas de bar do que as interpretarmos. E se essa
mesma imagem em si vier acompanhada pela canção “Dunny Buggy”, dos já citados
Oliver Onions, aí o estrago está feito. Poucas músicas na história do cinema
conseguem desencadear uma alegria, um alto astral tão tremendo quanto esta,
dada a congruência da aura de despojamento contida tanto na letra (“Come with
me for fun in my buggy/ Come along let’s go for the hell of it...”) quanto nas
imagens ilustradas por ela (as deliciosas cenas de luta, as perseguições de
moto, etc.).
Normalmente
atrelamos à infância a época mais feliz de nossas vidas porque ali o fenômeno (a
intuição, a ação, tal qual preconizado por Husserl) é a base de nossa
existência, e não o psicologismo exegético e discursivo, quando começamos a nos
observar sob outros ângulos (e desvelamos camadas de nossa personalidade até
então submersas), dando início ao nosso sofrimento metafísico, à gravidade
(basicamente a partir da adolescência), o que desencadeará uma busca incansável
pelo fenômeno puro, aquele que nos ofertou tanta felicidade, no entanto impossível
de ser resgatado (daí o uso de artifícios, como álcool e drogas a fim de que
essa base fenomenológica venha à tona, desobstruindo nosso superego – nossa
interdição –, e nos devolvendo o id – a libertação – que nos fora amputado).
O
que tudo isso tem a ver com “Dupla explosiva”? Simples. O filme se situa
exatamente nesse campo de associações mais hedonista de nossa formação, perfura
brechas para o resgate de uma forma de observar o mundo que já não mais
atingimos conscientemente. Reativa a potência do nosso id, aja visto que o
mundo se tornou um tanto quanto cínico. Por isso gemas como essa são pautas de
mesa de bar de trintões e quarentões cinéfilos, que não se cansam de enumerar
cenas específicas. A já citada briga de Hill e Spencer contra os
halterofilistas na academia do circo é um desses momentos perenes, daqueles que
a mera menção já nos faz entreabrir um sorriso (e como não sentir até uma certa
inveja por não sermos nós a estarmos lá, dando sopapos, fazendo malabarismos,
disparando piadinhas - “agora não!!”, diz Hill a um vilãozeco de segunda toda
vez que esse tenta participar da briga?). Ao final da exibição fica aquela
ingrata sensação de retorno à frivolidade do mundo real e por demais pensado.
O
cromatismo encanecido e amarelado do filme, também um dado estético que remete
às comédias proletárias setentistas, é um fator de obsolescência que tanto aqui
quanto em obras congêneres (como “Agarra-me se puderes”, de 77) só tornam mais
saboroso seu apelo nostálgico. Mas nada supera a iconicidade da dupla: a
mise-en- scène de Hill, sua elasticidade corporal, sua ironia, e a truculência de
Bud, seus resmungos, são imagens que carregamos por toda uma vida.
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