segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Águia na cabeça (Paulo Thiago, 1984)


“Putaquepariu, tá pensando que Ballantine’s é cachaça de Itu?”, “vem pra mim, vem, tô morrendo de tesão...”, “quem matar o dragão come o cu da princesa!”, “ah, que que você quer, hein? Já não pago o teu aluguel?” etc, etc. Diálogos como esses são verdadeiros patrimônios de um tipo de cinema que não existe mais no Brasil ideologicamente narcisista de hoje. Ou talvez exista, mas visto sempre sob a já inoportuna e clichê lupa de uma pós-modernidade que arrefece a frontalidade que apenas as narrativas mais cruas e realistas podem conceber. “Águia na cabeça”, pérola que aglutina ecos da marginalidade e do cinema boca-do-lixo, é daquelas obras carregadas de uma base empírica inextricavelmente vinculada a seu tempo, e isso fornece a sua narrativa uma veracidade tal, que chegamos a esquecer seu elenco repleto de rostos conhecidíssimos na tevê. Todos ali aparentam realmente pertencer àquele macrocosmo composto de bicheiros, matadores, políticos corruptos, magnatas, putas e carnavalescos. Todos enredados numa única e irremovível teia, a do benefício mútuo, esse que no Brasil do século XXI explode com cada vez menos reserva e pudor, e arrasta muito mais contingentes sociais em seu cabedal de desgraças. Mas o filme é muito mais do que o simples recorte de uma época.
A narrativa aborda a jornada de César (Nuno Leal Maia), braço direito do senador Ramos Guimarães, um banqueiro que acoberta e apoia a máfia do jogo do bicho no Rio de Janeiro. César ambiciona tomar para si o patrimônio do corrupto político, e não medirá esforços para conseguir o que almeja, mesmo que para isso tenha que manipular duas das mais poderosas facções do tal jogo, colocando-as uma contra a outra. Obviamente essa ardilosa empreitada encontrará muitos obstáculos, pois no fluxo de suas negociatas, César encontra espaço para manter duas relações, com uma dançarina de boate (Christiane Torloni) e com a filha do senador (Xuxa Lopes), com quem o ambicioso rapaz planeja se casar, mais no intuito de preencher o espaço do agora assassinado (por César) senador do que por amor. Na medida em que sua máscara vai se descortinando, a vida de César começa a correr perigo, e é nesse espaço de tempo em que faz de tudo, tanto para lograr êxito em seu plano, quanto para ludibriar sua futura esposa, que a narrativa se concentra.
Observando superficialmente, o personagem de Nuno é revestido de um mau-caratismo meramente arquetípico daquele submundo, o que não é verdade. Em um belíssimo momento, logo depois de trepar com sua amante, César para defronte à janela e desabafa: “quando vim pra Copacabana, fiquei maravilhado com o mar, com o glamour... depois que comecei a compreender o que existe por detrás de tudo isso, Copacabana pra mim se tornou um verdadeiro esgoto. Eu odeio essa cidade. E só vou conseguir sair dessa lama me tornando o dono dela.” Ou seja, na escalada ascensional de César reside um duplo e ambíguo movimento, pois no instante em que atingir o cume mais alto de suas ambições é que conseguirá se emancipar de tudo aquilo que subsiste em sua estrutura. Ele sabe demais, conhece os segredos de muita gente poderosa para abandonar tudo sem que detenha uma hierarquia que o proteja. Cabe dizer que César foi entregue ainda na infância à tutela do senador, a fim de que este o instruísse no mundo das tramoias políticas e formatasse, assim, um fiel escudeiro com quem poderia contar para o resto da vida. Aparentemente apático quanto ao fato de ter assassinado seu tutor, César parece carregar o peso do dano que ocasionou, entrevisto nos momentos em que sua imagem de criança percorrendo o salão da mansão do senador cruza a narrativa como se pertencesse à sua linearidade comum. Essa memória que atravessa algumas cenas sem pedir permissão pode muito bem ser lida como a consciência em frangalhos de César, que precisa manter sua mente equilibrada e reta para que nada saia errado. Há muita coisa em jogo para que um psicológico instável ponha tudo a perder. Daí a impressão de arrogância advinda de suas práticas, pois além de estar lidando com a corja mais perigosa do Rio de Janeiro, também precisa administrar com cautela suas ligações com a imprensa, mais uma instância corrompida.
Um dado extremamente positivo é o fato de em momento algum a narrativa resvalar no moralismo inquisitorial sobre as práticas de César e das organizações criminosas. Paulo Thiago se concentra na narrativa em sua forma mais pura, menos poluída por interferências advindas de esteticismos que pormenorizem a claudicância frontal de sua abordagem. Um exemplo disso reside na personagem de Christiane Torloni, que detém aquele ingênuo sonho de se libertar da vida de dançarina e finalmente ser “alguém”. Ela sabe que César vai se casar com outra, tem noção das tramoias em que ele se envolve, aceita sua condição daquilo que hoje é maldosamente chamado de “mulher-acessório”, mas em momento algum isso é questionado, pelo contrário: a perspectiva da futura ascese de César corresponde para ela a sua libertação daquele mundo. Ela se excita no momento em que César diz que será o rei do Rio, imediatamente pulando para seus braços e mencionando o supracitado “vem pra mim, tô morrendo de tesão”. Uma imagem, para muitos, acintosa, mas de inegável veracidade em contextos sociais de estrutura mais determinista.
Um lugar comum da cinematografia recente busca conjugar a perspectiva de personagens “marginalizados, mas dignos” com uma filtragem etérea – com pretensões escancaradamente poéticas – que arrefecem a crueza do ângulo realista ao ponto de uma aceitabilidade mais ampla e artística – ainda que em muitos casos, ilusória – de suas premissas. O exercício de dignificação da margem se tornou uma das prerrogativas mais recorrentes no cinema brasileiro de 2000 pra cá, daí o olhar compungido e forçosamente elogioso de toda e qualquer manifestação periférica (o patrão é sempre o vilão e o empregado, o bonzinho). Podemos equivaler esse olhar verticalizado à literatura romântica brasileira do século 19, que, em seu desejo de forjar uma base formativa a partir da qual nossa cultura seria erguida, enobrecia com extremo maniqueísmo tudo aquilo que correspondia à nossa terra, já em si um elemento marginalizado. O que alguns autores subsequentes a essa geração perceberam é que, o mau-caratismo, a dubiedade, a vilania, o elitismo em sua pior faceta, etc., são características que atravessam classes sociais – e a esse movimento mais verossímil, a fortuna crítica alcunhou pertinentemente de Realismo. Pois bem, o que vemos no cinema brasileiro é um movimento contrário, e por isso mesmo retroativo no que tange ao estabelecimento de uma maturidade estética dissociada de uma desesperada e pertinaz vontade de agradar o público mais “esclarecido”. O cinema de outrora detinha um poder de choque equivalente ao Realismo. O de hoje, ancorado na idealização de suas margens, se assemelha às concepções românticas.  Daí o insistente cruzamento com vias mais abstratas, pois ao menor contato com certos recursos menos “tangíveis” da nossa realidade, imediatamente uma cadeia de “valorização de obra” é ativada, como se o âmbito de uma estética mais refinada só pudesse ser admitido por vias mais liquefeitas, nunca por uma frontalidade mais enxuta.
Postas estas questões, é coerente afirmar que “Águia na cabeça” pertence a uma estirpe de cinema cuja mola propulsora é um realismo sem filtragens, direto e poderoso. Os admiradores da obsoleta – mas sempre eficaz em certo meio – estética dos “trigais balançando ao vento” certamente se enrubescerão com as cenas de sexo protagonizadas por Nuno e Torloni. O suor emanado por seus corpos, a ofegância, os palavrões, nada ali exala a refinamento estético. Ora, trata-se do recorte natural da realidade de uma trepada em seu estado mais puro, mais isento de pretensões poéticas, e o filme captura a todo instante essa “feiúra” desprovida de suntuosidade operística, e por isso mesmo chocante por sua veracidade. É a foda em seu aspecto fenomenológico, ou seja, provido da ação in loco, e não exegético, contemplado a posteriori. Dificilmente o espectador não se excitará em tais momentos – a cena em que Nuno come Zezé Mota na praia é mais deliciosamente rudimentar ainda – pois nos instala muito mais na posição de voyeurs de um sexo amador cru e real do que de admiradores de seu escopo virtuosístico. Sua ótica centrada unicamente na narrativa, sem pretensões multiangulares, atinge brutalmente o espectador menos preparado para esse tipo de obra, sem intervenções que satisfaçam sua perene – e em muitos casos artificiosa – necessidade de transubstanciar o factível.
Na escala da valorização da arte, a que gera mais possibilidades de leitura é sempre a mais enaltecida. Não há problema algum nisso. Mestres absolutos como Sergio Leone ou Bernardo Bertolucci souberam muito bem haurir de suas obras desdobramentos que só amplificaram a experiência de contemplá-las. Talvez o fator mais problemático seja a constituição de valores irremovivelmente ligados à mera evanescência como emblema contumaz de uma arte que nos ative passivamente o mecanismo da apreciação. A maneira como Thiago explora os personagens sempre os limita ao âmbito expositivo, nunca esgarçando suas composições para além do narrado. Essa opção, se não amplifica nosso olhar para a sempre hipervalorizada polissemia das imagens, por outro nos insere com muito mais potência no plano de um empirismo compatível com nossas práticas cotidianas. Não há um único personagem ali que não exale a essa aura de “gente comum”, que não tem tempo para refletir demais sobre suas ações. A câmera de Thiago em momento algum desterritorializa o olhar dos personagens para além do que está sendo ali vivenciado. Não há “silêncios eloquentes” que os projetem para além de suas ações. Há sim a realidade em seu aspecto mais frugal e direto, sem que se faça da “rotina” um veio estético. É apenas a rotina.
A escolha do elenco é algo que merece menção à parte. Nuno Leal Maia é daqueles atores que funcionam perfeitamente quando o que se exige de suas composições se restringe quase literalmente às práticas mais centradas na vida “exterior” do personagem. Sua compleição de homem comum, atípica pros arquétipos apolíneos do cinema contemporâneo, encampa com veracidade o périplo irrefreável de César, visto pela ótica de uma direção que negligencia um olhar mais apurado sobre seus possíveis desdobramentos psicológicos. Essa abordagem é apenas tangenciada, como já mencionado. E isso é um dado muito positivo, pois é aí que reside a força da composição de Nuno, uma quase não-atuação de tão removida de subliminaridades, de tão enxuta de floreios, sempre focada no pragmatismo textual-narratológico com que empreende seu plano.  Daí César ser um homem de ação, sem muito tempo para refletir sobre perdas e riscos. E daí Nuno hoje ser ator tão subestimado, pois seu modus operandi se contrapõe por completo à falaciosa – porque carregada de pretensões que põe o fio condutor do texto, da ação, em segundo plano – prerrogativa do herói de largo alcance interior, etéreo, plúmbeo, ou das “minorias”.
Jece Valadão interpreta o chefão da máfia mais poderosa de jogo do bicho do Rio de Janeiro. Sua atuação é absolutamente impecável, tanto pelo aspecto verossímil de sua composição, na verdade uma quase elegia de sua mítica de macheza, quanto pelo que ela carrega de anacrônico em seu âmbito historiográfico. Sua voz, seu andar, a imponência com que conduz seu personagem, são quase uma afronta para os padrões comportamentais de uma sociedade que anseia a todo custo pela quebra das demarcações de gênero, por mais que isso não se reflita na prática de um contingente sócio-cultural à margem de tanta elucubração – o mesmo exposto no filme. O homem de Valadão seria apedrejado hoje, pois também voa na contramão do modelo de representação de homem que a sociedade moderna admite. É daqueles que não precisam fazer voz grossa ou berrar incessantes palavrões para mostrar autoridade. Sua fala consegue ser tranquila e imponente, sem que se perceba uma única nesga de artificialismo em sua performance. Veja o caso de Wagner Moura em “Tropa de Elite”, por exemplo. A despeito da poderosa atuação com que forjou seu Capitão Nascimento, sua compleição apolínea precisa ser intermitentemente cruzada com brados efusivos para demarcar aquele modus vivendi. Já em Valadão o endurecimento está empiricamente entranhado em sua fala mansa, despojada de ornamentos que realcem sua rudeza; não há necessidade de didatizar através de berros o que se torna perceptível ao mero contato com seu biótipo: esse é um homem que já vivenciou de tudo na vida, já passou pelo inferno para chegar aonde chegou, e agora usufrui de suas conquistas como quem defende a todo custo uma vida que lhe fora negada. Vive coberto de luxo, sempre recorrendo às práticas sincretistas como forma de se proteger do mau olhado do inimigo, sustenta duas mulheres... E em nenhum momento o filme faz julgamentos moralistas de padrões que fracionam os segmentos sociais, religiosos ou sexuais em suas divisões mais estanques. Quanto a esses aspectos últimos, vejamos a personagem de Zezé Mota: negra, umbandista e amante do chefão. Nenhum desses elementos é tratado com solenidade romântica ou piedosa, simplesmente fazem parte da trama. Três instâncias das chamadas minorias que, a despeito de representarem segmentos que historicamente permaneceram – ou permanecem – à margem dos paradigmas de aceitabilidade em uma sociedade ainda carregada de injustiças, em momento algum são tratadas com olhar indulgente, assistencialista ou solene. Ou seja, em “Águia na cabeça”, o olhar artificioso gerado pela síndrome de enaltecimento romântico das margens do cinema atual é nula, dando espaço para uma visão muito mais realista e despojada desses recortes sociais. A naturalidade com que o filme aborda essas três esferas, exatamente por não enaltecê-las com supostas elegias, por isso mesmo as demarca com muito mais honestidade. Afinal de contas é na abordagem equilibrada dos contingentes que reside a força de uma sociedade mais igualitária, sem que se sublinhe com maniqueísmos politicamente corretos o tratamento ofertado a nenhuma instância.

Não obstante tudo isso, “Águia na cabeça” não deve ser visto mediante comparações com certo edulcoramento do cinema contemporâneo. Deve ser visto sim, como a mais pertinaz e adequada contextualização do subgênero de máfia – aquele que eternizou tantas obras soberbas na Itália, na França e nos EUA – em terra brasilis, agregando a elementos basilares desse segmento aspectos indeléveis e reais da nossa cultura. Doa a quem doer.

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