Águia na cabeça (Paulo Thiago, 1984)
“Putaquepariu,
tá pensando que Ballantine’s é cachaça de Itu?”, “vem pra mim, vem, tô morrendo
de tesão...”, “quem matar o dragão come o cu da princesa!”, “ah, que que você
quer, hein? Já não pago o teu aluguel?” etc, etc. Diálogos como esses são
verdadeiros patrimônios de um tipo de cinema que não existe mais no Brasil
ideologicamente narcisista de hoje. Ou talvez exista, mas visto sempre sob a já
inoportuna e clichê lupa de uma pós-modernidade que arrefece a frontalidade que
apenas as narrativas mais cruas e realistas podem conceber. “Águia na cabeça”, pérola
que aglutina ecos da marginalidade e do cinema boca-do-lixo, é daquelas obras
carregadas de uma base empírica inextricavelmente vinculada a seu tempo, e isso
fornece a sua narrativa uma veracidade tal, que chegamos a esquecer seu elenco
repleto de rostos conhecidíssimos na tevê. Todos ali aparentam realmente pertencer
àquele macrocosmo composto de bicheiros, matadores, políticos corruptos,
magnatas, putas e carnavalescos. Todos enredados numa única e irremovível teia,
a do benefício mútuo, esse que no Brasil do século XXI explode com cada vez
menos reserva e pudor, e arrasta muito mais contingentes sociais em seu cabedal
de desgraças. Mas o filme é muito mais do que o simples recorte de uma época.
A narrativa
aborda a jornada de César (Nuno Leal Maia), braço direito do senador Ramos
Guimarães, um banqueiro que acoberta e apoia a máfia do jogo do bicho no Rio de
Janeiro. César ambiciona tomar para si o patrimônio do corrupto político, e não
medirá esforços para conseguir o que almeja, mesmo que para isso tenha que
manipular duas das mais poderosas facções do tal jogo, colocando-as uma contra
a outra. Obviamente essa ardilosa empreitada encontrará muitos obstáculos, pois
no fluxo de suas negociatas, César encontra espaço para manter duas relações,
com uma dançarina de boate (Christiane Torloni) e com a filha do senador (Xuxa
Lopes), com quem o ambicioso rapaz planeja se casar, mais no intuito de
preencher o espaço do agora assassinado (por César) senador do que por amor. Na
medida em que sua máscara vai se descortinando, a vida de César começa a correr
perigo, e é nesse espaço de tempo em que faz de tudo, tanto para lograr êxito
em seu plano, quanto para ludibriar sua futura esposa, que a narrativa se
concentra.
Observando
superficialmente, o personagem de Nuno é revestido de um mau-caratismo
meramente arquetípico daquele submundo, o que não é verdade. Em um belíssimo
momento, logo depois de trepar com sua amante, César para defronte à janela e
desabafa: “quando vim pra Copacabana, fiquei maravilhado com o mar, com o
glamour... depois que comecei a compreender o que existe por detrás de tudo
isso, Copacabana pra mim se tornou um verdadeiro esgoto. Eu odeio essa cidade.
E só vou conseguir sair dessa lama me tornando o dono dela.” Ou seja, na
escalada ascensional de César reside um duplo e ambíguo movimento, pois no
instante em que atingir o cume mais alto de suas ambições é que conseguirá se
emancipar de tudo aquilo que subsiste em sua estrutura. Ele sabe demais,
conhece os segredos de muita gente poderosa para abandonar tudo sem que detenha
uma hierarquia que o proteja. Cabe dizer que César foi entregue ainda na
infância à tutela do senador, a fim de que este o instruísse no mundo das
tramoias políticas e formatasse, assim, um fiel escudeiro com quem poderia
contar para o resto da vida. Aparentemente apático quanto ao fato de ter
assassinado seu tutor, César parece carregar o peso do dano que ocasionou,
entrevisto nos momentos em que sua imagem de criança percorrendo o salão da
mansão do senador cruza a narrativa como se pertencesse à sua linearidade
comum. Essa memória que atravessa algumas cenas sem pedir permissão pode muito
bem ser lida como a consciência em frangalhos de César, que precisa manter sua
mente equilibrada e reta para que nada saia errado. Há muita coisa em jogo para
que um psicológico instável ponha tudo a perder. Daí a impressão de arrogância
advinda de suas práticas, pois além de estar lidando com a corja mais perigosa
do Rio de Janeiro, também precisa administrar com cautela suas ligações com a
imprensa, mais uma instância corrompida.
Um dado
extremamente positivo é o fato de em momento algum a narrativa resvalar no
moralismo inquisitorial sobre as práticas de César e das organizações
criminosas. Paulo Thiago se concentra na narrativa em sua forma mais pura,
menos poluída por interferências advindas de esteticismos que pormenorizem a
claudicância frontal de sua abordagem. Um exemplo disso reside na personagem de
Christiane Torloni, que detém aquele ingênuo sonho de se libertar da vida de
dançarina e finalmente ser “alguém”. Ela sabe que César vai se casar com outra,
tem noção das tramoias em que ele se envolve, aceita sua condição daquilo que
hoje é maldosamente chamado de “mulher-acessório”, mas em momento algum isso é
questionado, pelo contrário: a perspectiva da futura ascese de César
corresponde para ela a sua libertação daquele mundo. Ela se excita no momento
em que César diz que será o rei do Rio, imediatamente pulando para seus braços
e mencionando o supracitado “vem pra mim, tô morrendo de tesão”. Uma imagem,
para muitos, acintosa, mas de inegável veracidade em contextos sociais de
estrutura mais determinista.
Um lugar comum
da cinematografia recente busca conjugar a perspectiva de personagens
“marginalizados, mas dignos” com uma filtragem etérea – com pretensões
escancaradamente poéticas – que arrefecem a crueza do ângulo realista ao ponto de
uma aceitabilidade mais ampla e artística – ainda que em muitos casos, ilusória
– de suas premissas. O exercício de dignificação da margem se tornou uma das
prerrogativas mais recorrentes no cinema brasileiro de 2000 pra cá, daí o olhar
compungido e forçosamente elogioso de toda e qualquer manifestação periférica
(o patrão é sempre o vilão e o empregado, o bonzinho). Podemos equivaler esse
olhar verticalizado à literatura romântica brasileira do século 19, que, em seu
desejo de forjar uma base formativa a partir da qual nossa cultura seria
erguida, enobrecia com extremo maniqueísmo tudo aquilo que correspondia à nossa
terra, já em si um elemento marginalizado. O que alguns autores subsequentes a
essa geração perceberam é que, o mau-caratismo, a dubiedade, a vilania, o
elitismo em sua pior faceta, etc., são características que atravessam classes
sociais – e a esse movimento mais verossímil, a fortuna crítica alcunhou
pertinentemente de Realismo. Pois bem, o que vemos no cinema brasileiro é um
movimento contrário, e por isso mesmo retroativo no que tange ao
estabelecimento de uma maturidade estética dissociada de uma desesperada e
pertinaz vontade de agradar o público mais “esclarecido”. O cinema de outrora
detinha um poder de choque equivalente ao Realismo. O de hoje, ancorado na
idealização de suas margens, se assemelha às concepções românticas. Daí o insistente cruzamento com vias mais
abstratas, pois ao menor contato com certos recursos menos “tangíveis” da nossa
realidade, imediatamente uma cadeia de “valorização de obra” é ativada, como se
o âmbito de uma estética mais refinada só pudesse ser admitido por vias mais
liquefeitas, nunca por uma frontalidade mais enxuta.
Postas estas
questões, é coerente afirmar que “Águia na cabeça” pertence a uma estirpe de cinema
cuja mola propulsora é um realismo sem filtragens, direto e poderoso. Os
admiradores da obsoleta – mas sempre eficaz em certo meio – estética dos
“trigais balançando ao vento” certamente se enrubescerão com as cenas de sexo
protagonizadas por Nuno e Torloni. O suor emanado por seus corpos, a ofegância,
os palavrões, nada ali exala a refinamento estético. Ora, trata-se do recorte
natural da realidade de uma trepada em seu estado mais puro, mais isento de
pretensões poéticas, e o filme captura a todo instante essa “feiúra” desprovida
de suntuosidade operística, e por isso mesmo chocante por sua veracidade. É a
foda em seu aspecto fenomenológico, ou seja, provido da ação in loco, e não exegético, contemplado a posteriori. Dificilmente o espectador
não se excitará em tais momentos – a cena em que Nuno come Zezé Mota na praia é
mais deliciosamente rudimentar ainda – pois nos instala muito mais na posição
de voyeurs de um sexo amador cru e real do que de admiradores de seu escopo
virtuosístico. Sua ótica centrada unicamente na narrativa, sem pretensões
multiangulares, atinge brutalmente o espectador menos preparado para esse tipo
de obra, sem intervenções que satisfaçam sua perene – e em muitos casos
artificiosa – necessidade de transubstanciar o factível.
Na escala da
valorização da arte, a que gera mais possibilidades de leitura é sempre a mais
enaltecida. Não há problema algum nisso. Mestres absolutos como Sergio Leone ou
Bernardo Bertolucci souberam muito bem haurir de suas obras desdobramentos que
só amplificaram a experiência de contemplá-las. Talvez o fator mais
problemático seja a constituição de valores irremovivelmente ligados à mera
evanescência como emblema contumaz de uma arte que nos ative passivamente o
mecanismo da apreciação. A maneira como Thiago explora os personagens sempre os
limita ao âmbito expositivo, nunca esgarçando suas composições para além do
narrado. Essa opção, se não amplifica nosso olhar para a sempre hipervalorizada
polissemia das imagens, por outro nos insere com muito mais potência no plano
de um empirismo compatível com nossas práticas cotidianas. Não há um único
personagem ali que não exale a essa aura de “gente comum”, que não tem tempo
para refletir demais sobre suas ações. A câmera de Thiago em momento algum
desterritorializa o olhar dos personagens para além do que está sendo ali
vivenciado. Não há “silêncios eloquentes” que os projetem para além de suas
ações. Há sim a realidade em seu aspecto mais frugal e direto, sem que se faça
da “rotina” um veio estético. É apenas a rotina.
A escolha do
elenco é algo que merece menção à parte. Nuno Leal Maia é daqueles atores que
funcionam perfeitamente quando o que se exige de suas composições se restringe
quase literalmente às práticas mais centradas na vida “exterior” do personagem.
Sua compleição de homem comum, atípica pros arquétipos apolíneos do cinema
contemporâneo, encampa com veracidade o périplo irrefreável de César, visto
pela ótica de uma direção que negligencia um olhar mais apurado sobre seus
possíveis desdobramentos psicológicos. Essa abordagem é apenas tangenciada,
como já mencionado. E isso é um dado muito positivo, pois é aí que reside a
força da composição de Nuno, uma quase não-atuação de tão removida de
subliminaridades, de tão enxuta de floreios, sempre focada no pragmatismo
textual-narratológico com que empreende seu plano. Daí César ser um homem de ação, sem muito
tempo para refletir sobre perdas e riscos. E daí Nuno hoje ser ator tão
subestimado, pois seu modus operandi se
contrapõe por completo à falaciosa – porque carregada de pretensões que põe o
fio condutor do texto, da ação, em segundo plano – prerrogativa do herói de
largo alcance interior, etéreo, plúmbeo, ou das “minorias”.
Jece Valadão
interpreta o chefão da máfia mais poderosa de jogo do bicho do Rio de Janeiro.
Sua atuação é absolutamente impecável, tanto pelo aspecto verossímil de sua
composição, na verdade uma quase elegia de sua mítica de macheza, quanto pelo
que ela carrega de anacrônico em seu âmbito historiográfico. Sua voz, seu andar,
a imponência com que conduz seu personagem, são quase uma afronta para os
padrões comportamentais de uma sociedade que anseia a todo custo pela quebra
das demarcações de gênero, por mais que isso não se reflita na prática de um
contingente sócio-cultural à margem de tanta elucubração – o mesmo exposto no
filme. O homem de Valadão seria apedrejado hoje, pois também voa na contramão
do modelo de representação de homem que a sociedade moderna admite. É daqueles
que não precisam fazer voz grossa ou berrar incessantes palavrões para mostrar
autoridade. Sua fala consegue ser tranquila e imponente, sem que se perceba uma
única nesga de artificialismo em sua performance. Veja o caso de Wagner Moura
em “Tropa de Elite”, por exemplo. A despeito da poderosa atuação com que forjou
seu Capitão Nascimento, sua compleição apolínea precisa ser intermitentemente
cruzada com brados efusivos para demarcar aquele modus vivendi. Já em Valadão o endurecimento está empiricamente entranhado
em sua fala mansa, despojada de ornamentos que realcem sua rudeza; não há
necessidade de didatizar através de berros o que se torna perceptível ao mero
contato com seu biótipo: esse é um homem que já vivenciou de tudo na vida, já
passou pelo inferno para chegar aonde chegou, e agora usufrui de suas
conquistas como quem defende a todo custo uma vida que lhe fora negada. Vive
coberto de luxo, sempre recorrendo às práticas sincretistas como forma de se
proteger do mau olhado do inimigo, sustenta duas mulheres... E em nenhum
momento o filme faz julgamentos moralistas de padrões que fracionam os
segmentos sociais, religiosos ou sexuais em suas divisões mais estanques.
Quanto a esses aspectos últimos, vejamos a personagem de Zezé Mota: negra,
umbandista e amante do chefão. Nenhum desses elementos é tratado com solenidade
romântica ou piedosa, simplesmente fazem parte da trama. Três instâncias das
chamadas minorias que, a despeito de representarem segmentos que historicamente
permaneceram – ou permanecem – à margem dos paradigmas de aceitabilidade em uma
sociedade ainda carregada de injustiças, em momento algum são tratadas com
olhar indulgente, assistencialista ou solene. Ou seja, em “Águia na cabeça”, o
olhar artificioso gerado pela síndrome de enaltecimento romântico das margens
do cinema atual é nula, dando espaço para uma visão muito mais realista e
despojada desses recortes sociais. A naturalidade com que o filme aborda essas
três esferas, exatamente por não enaltecê-las com supostas elegias, por isso
mesmo as demarca com muito mais honestidade. Afinal de contas é na abordagem
equilibrada dos contingentes que reside a força de uma sociedade mais igualitária,
sem que se sublinhe com maniqueísmos politicamente corretos o tratamento
ofertado a nenhuma instância.
Não obstante
tudo isso, “Águia na cabeça” não deve ser visto mediante comparações com certo
edulcoramento do cinema contemporâneo. Deve ser visto sim, como a mais pertinaz
e adequada contextualização do subgênero de máfia – aquele que eternizou tantas
obras soberbas na Itália, na França e nos EUA – em terra brasilis, agregando a elementos basilares desse segmento
aspectos indeléveis e reais da nossa cultura. Doa a quem doer.
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