sábado, 7 de janeiro de 2017

48 Horas (Walter Hill, 1982)



Subgênero maior pertencente à cartilha do filme policial, o buddy movie detém essa primazia por conectar à trama investigativa o sempre típico (mas eficaz) desenrolar de parcerias cujo mote inicial é a adversidade entre a dupla de protagonistas, desde um grau menor de incompatibilidade de gênios (“Tango & Cash”, “Inferno vermelho”, etc.), até o paroxismo de desavenças que, entre si, rivalizam em agressividade com o próprio fio condutor que os une. Nesse quesito último, o clássico da incorreção “48 horas”, de Walter Hill, inquestionavelmente pode configurar no panteão de um dos maiores buddy movies de todos os tempos.
A trama não poderia ser mais simples. Jack Cates (Nick Nolte), tira extremamente agressivo, é obrigado a pedir ajuda ao detento Reggie Hammond (Eddie Murphy, em seu primeiro filme) para investigar o paradeiro de uma dupla de criminosos fugitivos que mataram seu parceiro. E Reggie, por já ter sido membro da mesma quadrilha, acaba sendo sua única chance de achá-los. Até aí tudo bem, mas a gramática do atrito entre o tira branco e o fora da lei negro é elevada a um clima de animosidade até então atípico para as produções do gênero, quase como uma resposta tardia à supremacia negra preconizada pelo cinema blaxpoitation da década anterior. A começar pelo festival de impropérios raciais agressivamente expressos  pelo policial de Nolte, cuja composição esbarra com verossimilhança na linha tênue que separa o mau caratismo da bandidagem, com a qual lida diariamente, da ética do tira incorruptível e intolerante com burocratas de corregedoria. Essas barreiras por vezes são ultrapassadas, dado que a princípio nos impossibilita uma cumplicidade maior com o policial (em certo momento, Cates diz a Hammond: ”Olha só pra você, está usando um terno de 1000 dólares, mas continua parecendo um vagabundo!”, uma nítida afirmação de sua hierarquia sob todos os aspectos, mas principalmente o racial) e nos impele a uma identificação maior com o detento Hammond, mesmo porque a metralhadora verbal de Murphy está mais contida que a de seus filmes posteriores (o que gera uma assimetria enorme entre a truculência do tira e a simpatia gerada por seu prisioneiro).


A narrativa conflui com agilidade a certos terrenos arquetípicos do filme de gênero, mas o faz com tal viço e competência que nunca nos sentimos anestesiados. Um bom exemplo é a sequência em que a dupla cai no tapa, o que já era de se esperar, mas a boa direção de Hill, a ambientação imunda, o desrespeito entre ambos explodindo a cada murro, a cada novo xingamento (Cates, partindo violentamente pra cima de Hammond: “Seu negro sujo!”, e Hammond: “Não me jogue no lixo, seu cretino!”) redimensiona os protocolos dessa gramática a um paradigma refrescantemente atualizado. Temos a impressão de acessar um código novo, quando na verdade já o acessamos bem antes, mas sempre sob o peso de alguma lacuna estética que não potencializasse nosso olhar. E em “48 horas” a releitura desses signos padrões (atrito relacional, investigação, tiroteio final, etc.) é intensificada ao limite a que cada um deles alcança, sem, no entanto, comprometer sua cartilha basilar. Por exemplo, uma discussão entre ambos os protagonistas nunca é pontuada por afrontas genéricas, como “idiota”, “cretino”, etc., mas vinculada a traços injuriosamente segregacionistas (“negro sujo”, “branco nojento”, “vagabundo”, etc.), sendo a maior parte delas vociferadas pelo tira branco. E essa corajosa quebra de uma imediata identificação protocolarmente ética do espectador com o protagonista (que usa e abusa de sua autoridade policial) é uma das características do cinema de Hill, pautado pela rudeza.

O fato de a composição de Cates resvalar em uma verossímil falta de freios morais gera mais impacto se contrastarmos com os edulcorantes tempos de correção em que vivemos, cujas questões raciais são abordadas com extremo cuidado na busca por uma equalização que as escamoteie, mas certa condescendência hipócrita e até assistencialista se observarmos a falta de uma saudável incorreção na composição de grande parte dos personagens negros do cinema atual (razão esta que justifica o declínio da carreira de Eddie Murphy, devidamente abrandado como um comediante família para agradar pais e crianças). Gênios como o Eddie Murphy oitentista ou o Richard Pryor setentista nunca poderiam pertencer ao mundo de hoje, pois a base de sua estética bem humorada era o improviso à moda Actors Studio, a anarquia como forma de afirmação (mais ideológica em Pryor e descompromissada em Murphy) de suas idiossincrasias. Não eram comediantes padrões, como Jerry Lewis. Com a morte de Pryor nos anos 90 e a assunção de Murphy como humorista de gênero concomitante à sua decadência (não à toa um dos seus poucos sucessos dos anos 90 em diante foi o remake de “O professor aloprado”, de Lewis), toda aquela chama subversiva se converteu ou em comédias politicamente corretas como as estreladas pelos então jovens Will Smith e Chris Rock, ou  pontuadas pela grosseria acéfala, à moda irmãos Wayans e Martin Lawrence. Terry Crews talvez seja quem mais se aproxime daquele espírito de incorreção dos anos oitenta, mas mais por sua compleição física do que exatamente por suas performances.

 Como é de praxe em Hollywood, em algum momento a rudeza cede espaço à contemporização, como no mal aproveitado “16 quadras”, de Richard Donner. Só que em “48 horas” mesmo esse mea culpa (já no terço final do filme, diga-se) vem desprovido de glamour, e sua delicadeza é apenas brevemente abarcada no momento em que Hammond pede um dinheiro a Cates para levar uma jovem a um hotel. O tira, já desgostoso com os rumos nada satisfatórios da investigação, mas ao mesmo tempo ciente do valioso auxílio de Hammond, põe a mão no bolso e retira de lá um amontoado de papel amassado (um dado aparentemente pequeno, mas que realça o desapego de Cates com seu modus vivendi), estando o dinheiro entre eles. Meticulosa e gentilmente, Cates desamassa a nota e a entrega a Hammond, não sem antes pedir, de soslaio, desculpas pelos xingamentos. Tudo muito sutil, sem ornamento algum. E fica por aí. A narrativa retoma seu teor visceral de imediato, com as arquetípicas perseguições desembocando na icônica sequência em que Hammond é pego por um dos bandidos e ambos ficam sob a mira da pistola de Cates. É louvável a plasticidade crua com que tanto Hill quanto Nolte configuram a imagem do tira nesse momento, extremante recrudescida por seu cansaço, por seu ódio mortal pelo assassino de seu amigo. A câmera foca em seu olhar já apático, petrificado, e até disposto arriscar a vida de Hammond para pegar o criminoso (uma cena que dialoga com outra similar no início do filme), em um daqueles reprocessamentos de códigos já citados. Na gramática do cinema policial comum, o policial entregaria a arma. Já aqui...

 Há de se elogiar a música urgente e máscula de James Horner, cujos picos se confundem com a octanagem das cenas (confluência nítida no tiroteio na escadaria do hotel, logo no início do filme), assim como a produção dos papas da violência Lawrence Gordon e Joel Silver, que, conduzidos pelo maestro Walter Hill, forjaram o exemplar máximo do cinema de testosterona dos anos oitenta. 

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