Os filmes policiais são divididos em alguns subgêneros que
deram muito certo no cinema, como os policiais de suspense (Seven, O Silêncio
dos Inocentes), os investigativos (A Promessa, Beijos que Matam) os noir (O
Falcão Maltês, Chinatown) os buddy cops (Tango & Cash, Inferno Vermelho), e
talvez um dos mais populares dos anos 80 e 90: os buddy dog cops, obras
policiais que envolviam a mesma estrutura de um bud cop tradicional sério, mas
trocando um parceiro humano, por um parceiro cachorro. E dentro desse subgrupo
onde Tom Hanks e até mesmo Chuck Norris já se enveredaram, existiu aquele que
será lembrado como o exponencial máximo e o mais representativo dentro do
filão: K-9, Um Policial Bom pra Cachorro.
Dirigido com muita competência por Rod Daniel, o filme já
abre com uma introdução típica dos policiais dos anos 80; apresentando o protagonista
e uma tentativa de assassinato – ainda que com resvalos de humor -, logo nos
seus primeiros segundos. E é nítida a influência que Rod Daniel captou de
diretores como Walter Hill e Richard Donner; não por acaso, cineastas que
criaram obras-primas do cinema Buddy Cop. A trilha incidental já na abertura do
filme, remete imediatamente à “48hrs”, e as paisagens urbanamente solares da
Califórnia, nos coloca diante das fotografias de “Máquina Mortífera”. Ainda que
seja um honesto policial de comédia, fica claro que Daniel enxertou elementos
clássicos dessas duas supracitadas obras... inclusive, obedecendo ainda mais à
cartilha dos policiais que são obrigados a trabalharem juntos mesmo sob
conflitos. E aqui, esse inicial atrito se torna ainda mais natural, já que
estamos falando de duas espécies completamente diferentes de policiais: um
homem e um cão.
A narrativa é esperta em deixar o ultra carismático James Belushi
brilhar em 15 minutos de projeção, pra só depois nos apresentar o seu inusitado
parceiro canino. Vale lembrar que Belushi estava no auge de sua filmografia, e
toda a sua verve irônica funciona perfeitamente na pele de um tira debochado como
Michael Dooley. Há momentos, como a entrada dele no Departamento até a sala do
Chefe, incluindo aí a discussão com seu superior, que nos direciona a todo
aquele clima farsesco e cínico dos trabalhos de Eddie Murphy, como “Um Tira da
Pesada”, por exemplo. A metralhadora divertidamente verbal de Belushi, se
aproxima de caras como Murphy, e até de Bruce Willis, no início de carreira. Basta
perceber o tanto de sarcasmo existente em cada palavra juntada aos trejeitos
físicos e faciais do ator. Sua performance debochada é inegavelmente irresistível.
O clima divertido que o filme já possui, muito assegurado
por todo o tom que Belushi passa, se fortalece ainda mais quando o pastor
alemão Jerry Lee (nome do cachorro na vida real também) entra em cena. E parece
que o diretor Ron Daniel, propositalmente, faz a brincadeira ficar ainda mais
conectada... o cachorro Jerry Lee é entregue à Dooley pelo personagem
Brannigan, um policial da Divisão Canina interpretado por ninguém menos que Ed
O’Neill; um dos comediantes mais fantásticos dos anos 80. Talvez, os fãs assíduos
da série “Um Amor de Família”, o conheça como o mitológico Al Bundy. Estava
iniciado, à partir daquele momento, o espetáculo que a narrativa oferecia.
Michael Dooley e Jerry Lee se transformam numa daquelas
duplas que, entre picuinhas e rixas, vão notoriamente conquistando o espectador;
não tem como deixar de rir quando Dooley tenta a todo custo, e em vão, fazer
com que Jerry Lee fique no banco de trás do carro como todo cachorro comum.
Acontece que Lee não era um cachorro comum. Assim como o personagem de Belushi,
o cão apresentava o mesmo tipo de personalidade, e justamente por isso, era tão
delicioso acompanhar os dois temperamentais personagens se chocarem. E a
direção de Daniel é certeira nos closes do animal, e em seus sons
característicos que em muitas horas, lembravam claramente resmungos e discordâncias.
Há uma sequência, inclusive, que Dooley leva seu conversível a um Lava-jato com
Jerry dentro, para dar banho ao animal. A “resposta” do cão não poderia ser
mais apropriada ao seu gênio: todo molhado, e visivelmente irritado, ele
arranca à dentadas o rádio do automóvel de Dooley. Passagens como essa, estão
em quase todo o filme, mas encaixadas de forma nunca gratuita e dando ainda
mais dinamismo e fluência ao relacionamento dos dois protagonistas.
Mas destaco aqui, a cena que fica óbvia, o começo da forte parceria
da dupla: ao entrar em um boteco barra-pesada para encontrar um informante,
Dooley é pego por uns marginais e imobilizado em cima do balcão do bar. Nisso,
aparece na porta do recinto, Jerry Lee. Transmitindo aparentemente um semblante
inofensivo e fugaz, sentado de forma passiva de frente à porta, o cão é
enxotado pelo líder dos bandidos. A cena inteira é uma clara referência aos
filmes policiais em que o tira durão sempre aparece de surpresa depois de
pegarem seu parceiro mais burocrata. É como imaginar o próprio James Belushi em
Inferno Vermelho sendo intimidado, até que surgisse em cena Ivan Danko,
interpretado pelo imponente e temido Arnold Schwarzenegger. Só que aqui,
transformemos o velho Arnold na figura inusitada de um pastor alemão, que
consegue pegar com a boca, uma bola de sinuca arremessada violentamente contra
ele. E parti-la ao meio, com uma naturalidade de quem diz: “Eu posso fazer o
mesmo com você”. O velho estilo good cop e bad cop estava desde então, apresentado
subliminarmente pro espectador depois dessa cena.
Mas, lembremos que ainda é um filme de comédia. K-9 (sigla
que significa a palavra CANINO, na pronúncia do inglês “Key” + “Nine”) tem como
personagem central, James Belushi. E seria evidente que o roteiro não ia deixar
passar momentos de humor e gags divertidíssimas que abrilhantasse o astro. A
sequência na praia, onde ele se finge de cego, para que Jerry Lee permanecesse
ao seu lado, é impagável. Mas nada que supere o momento em que ele apresenta à
Tracy, sua namorada, o novo parceiro canino. A narrativa brinca de forma muito
inteligente a construção do ciúme e da rivalidade entre os dois. Ambos “disputam”
a atenção da mulher. Para Dooley, Tracy é sua namorada. Para Jerry, a fêmea é
sua dona. Logo, o embate entre os dois, desemboca surpreendentemente com Dooley
chamando Jerry para uma conversa entre machos: “Olha aqui, ela é minha... e
você não vai tomar o meu espaço. A situação é simples, e pode ser bem tribal.
Ou você respeita isso, ou vamos ter um problema!”. Não tem como evitar o riso nessas
provocações e rixismos concebidos entre os dois no apartamento de Tracy, com
direito a trancafiadas em terraços, armários, e até numa briga corporal no chão
da cozinha – alguém lembra da mesma “conversa entre homens” no beco,
protagonizado por Nick Nolte e Eddie Murphy, em “48hrs”? Mas, Jerry Lee tem sua
recompensa quando encontra uma cadelinha branca de focinho depilado, numa das
passagens mais legais do filme, ao som de “Oh, Yeah”, da banda Hello, e “I Feel
Good”, de James Brown. Essa sequência, que dá início ao terceiro e último ato
do filme, apenas entrelaça de forma veemente, o quanto os dois já estão se tornando
bons amigos.
O filme se esvai numa narrativa simples e envolvente. O
traficante Lyman (Kevin Tighe) quer realizar um milionário carregamento de
drogas transportadas no interior de carros, e Michael Dooley que o persegue há
dois anos, quer acabar com isso. O fator de tira comum está em todo instante
impregnado no personagem de Belushi. O ator fornece ao personagem todos os
elementos gaiatos e de quase perdedor que o tira possui. A começar que Dooley
tem um joguinho eletrônico (uma espécie de míni-game) que ele nunca consegue
ganhar, e o aparelho ainda emite uma sonora e irritante gargalhada quando ele
perde. Os monólogos retóricos do personagem, são uma espécie de conversa com
ele mesmo, sobre seus erros, suas falhas e de seus fracassos. A entrada do cão
em sua vida, por mais rejeitada pessoalmente que fosse, lá no começo, chega para
modifica-lo. Dooley é um sujeito de bom coração, mas que visivelmente, não
tinha tantos relacionamentos de sucesso. Seus amigos o sacaneiam, seu chefe o
detesta e sua namorada admite que o ama, mas que sua vida profissional sempre a
colocará em segundo plano, de uma forma ou de outra. Jerry Lee transforma isso,
aos poucos! Já no final do filme, quando Dooley sabe que sua namorada foi
sequestrada, ele tem uma bonita “conversa” com Jerry, sobre como conheceu
Tracy. No interior do seu carro, Dooley reforça o sentimento de que precisava
de um amigo, de um ouvinte, de quem mesmo sem entender o que ele fala, pudesse
estar ao seu lado olhando pra ele. E seu parceiro canino estava ali... no banco
ao lado, como um verdadeiro amigo ouvindo o seu desabafo. E é ainda mais
edificante ver como a direção de Daniel faz com que o cão olhe Belushi nos
olhos, virando a cara toda hora em que Dooley olha pra ele.
O final assume um tom bem mais sério, quando Michael Dooley
e Jerry Lee, vão atrás de Lyman para resgatar Tracy. O diretor Rod Daniel
destaca ainda mais o heroísmo do cão, quando o mostra duas vezes em câmera
lenta, correndo atrás do caminhão até pegar o motorista, e depois, quando o
cachorro persegue o grande vilão, antes de ser baleado pelo mesmo. Nessa hora,
não há como não se comover com a grande atuação de James Belushi. Tido para
alguns como somente um comediante, o ator consegue transmitir uma visceralidade
emocionante ao ver Jerry Lee ser atingido...
o grito que ele dá junto aos tiros que revida em Lyman até a retirada do corpo
de Jerry do deserto, é a certeza pro espectador que, entre atritos e conflitos,
Dooley reconheceu naquele cachorro tão genioso quanto ele, que nunca teve um
parceiro e um amigo mais importante!
A cena do hospital, com uma das montagens mais bem conduzidas num filme do tipo, mostra Jerry Lee numa ala de recuperação com Dooley
acreditando que ele estava morto, e por isso, revelando todo o sentimento e carinho que ele tinha para com o cão. Mas,
Jerry, já de olhos abertos, finge-se de morto toda vez que Dooley se volta para
ele. Mesmo com um sorriso estampado no rosto, não há como o espectador não
testemunhar uma grande interpretação de James Belushi (uma das melhores de sua
carreira). E, talvez, uma de suas mais passionais. É de fácil emoção
quando ele, no hospital, tenta se convencer diante de Tracy, que o cachorro era
treinado pra isso, que Jerry Lee era treinado pra levar um tiro. Quando Tracy o abraça, Belushi
humanamente desmorona dizendo sob um sincero choro: “Meu Deus, foi muito sangue... ele perdeu
muito sangue!”.
E mesmo com uma última visão impagável dentro do Mustang em
direção à Las Vegas, fica a prova pro espectador, que K-9 não se trata de um
filme dispensável em uma sessão vespertina. Trata-se de uma obra, que mesmo
descompromissada, se tornou a melhor representação do melhor Buddy Dog Cop já
feito.