sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

K-9, Um Policial Bom Pra Cachorro (Rod Daniel, 1989)



Os filmes policiais são divididos em alguns subgêneros que deram muito certo no cinema, como os policiais de suspense (Seven, O Silêncio dos Inocentes), os investigativos (A Promessa, Beijos que Matam) os noir (O Falcão Maltês, Chinatown) os buddy cops (Tango & Cash, Inferno Vermelho), e talvez um dos mais populares dos anos 80 e 90: os buddy dog cops, obras policiais que envolviam a mesma estrutura de um bud cop tradicional sério, mas trocando um parceiro humano, por um parceiro cachorro. E dentro desse subgrupo onde Tom Hanks e até mesmo Chuck Norris já se enveredaram, existiu aquele que será lembrado como o exponencial máximo e o mais representativo dentro do filão: K-9, Um Policial Bom pra Cachorro.

Dirigido com muita competência por Rod Daniel, o filme já abre com uma introdução típica dos policiais dos anos 80; apresentando o protagonista e uma tentativa de assassinato – ainda que com resvalos de humor -, logo nos seus primeiros segundos. E é nítida a influência que Rod Daniel captou de diretores como Walter Hill e Richard Donner; não por acaso, cineastas que criaram obras-primas do cinema Buddy Cop. A trilha incidental já na abertura do filme, remete imediatamente à “48hrs”, e as paisagens urbanamente solares da Califórnia, nos coloca diante das fotografias de “Máquina Mortífera”. Ainda que seja um honesto policial de comédia, fica claro que Daniel enxertou elementos clássicos dessas duas supracitadas obras... inclusive, obedecendo ainda mais à cartilha dos policiais que são obrigados a trabalharem juntos mesmo sob conflitos. E aqui, esse inicial atrito se torna ainda mais natural, já que estamos falando de duas espécies completamente diferentes de policiais: um homem e um cão.

A narrativa é esperta em deixar o ultra carismático James Belushi brilhar em 15 minutos de projeção, pra só depois nos apresentar o seu inusitado parceiro canino. Vale lembrar que Belushi estava no auge de sua filmografia, e toda a sua verve irônica funciona perfeitamente na pele de um tira debochado como Michael Dooley. Há momentos, como a entrada dele no Departamento até a sala do Chefe, incluindo aí a discussão com seu superior, que nos direciona a todo aquele clima farsesco e cínico dos trabalhos de Eddie Murphy, como “Um Tira da Pesada”, por exemplo. A metralhadora divertidamente verbal de Belushi, se aproxima de caras como Murphy, e até de Bruce Willis, no início de carreira. Basta perceber o tanto de sarcasmo existente em cada palavra juntada aos trejeitos físicos e faciais do ator. Sua performance debochada é inegavelmente irresistível.

O clima divertido que o filme já possui, muito assegurado por todo o tom que Belushi passa, se fortalece ainda mais quando o pastor alemão Jerry Lee (nome do cachorro na vida real também) entra em cena. E parece que o diretor Ron Daniel, propositalmente, faz a brincadeira ficar ainda mais conectada... o cachorro Jerry Lee é entregue à Dooley pelo personagem Brannigan, um policial da Divisão Canina interpretado por ninguém menos que Ed O’Neill; um dos comediantes mais fantásticos dos anos 80. Talvez, os fãs assíduos da série “Um Amor de Família”, o conheça como o mitológico Al Bundy. Estava iniciado, à partir daquele momento, o espetáculo que a narrativa oferecia.

Michael Dooley e Jerry Lee se transformam numa daquelas duplas que, entre picuinhas e rixas, vão notoriamente conquistando o espectador; não tem como deixar de rir quando Dooley tenta a todo custo, e em vão, fazer com que Jerry Lee fique no banco de trás do carro como todo cachorro comum. Acontece que Lee não era um cachorro comum. Assim como o personagem de Belushi, o cão apresentava o mesmo tipo de personalidade, e justamente por isso, era tão delicioso acompanhar os dois temperamentais personagens se chocarem. E a direção de Daniel é certeira nos closes do animal, e em seus sons característicos que em muitas horas, lembravam claramente resmungos e discordâncias. Há uma sequência, inclusive, que Dooley leva seu conversível a um Lava-jato com Jerry dentro, para dar banho ao animal. A “resposta” do cão não poderia ser mais apropriada ao seu gênio: todo molhado, e visivelmente irritado, ele arranca à dentadas o rádio do automóvel de Dooley. Passagens como essa, estão em quase todo o filme, mas encaixadas de forma nunca gratuita e dando ainda mais dinamismo e fluência ao relacionamento dos dois protagonistas.

Mas destaco aqui, a cena que fica óbvia, o começo da forte parceria da dupla: ao entrar em um boteco barra-pesada para encontrar um informante, Dooley é pego por uns marginais e imobilizado em cima do balcão do bar. Nisso, aparece na porta do recinto, Jerry Lee. Transmitindo aparentemente um semblante inofensivo e fugaz, sentado de forma passiva de frente à porta, o cão é enxotado pelo líder dos bandidos. A cena inteira é uma clara referência aos filmes policiais em que o tira durão sempre aparece de surpresa depois de pegarem seu parceiro mais burocrata. É como imaginar o próprio James Belushi em Inferno Vermelho sendo intimidado, até que surgisse em cena Ivan Danko, interpretado pelo imponente e temido Arnold Schwarzenegger. Só que aqui, transformemos o velho Arnold na figura inusitada de um pastor alemão, que consegue pegar com a boca, uma bola de sinuca arremessada violentamente contra ele. E parti-la ao meio, com uma naturalidade de quem diz: “Eu posso fazer o mesmo com você”. O velho estilo good cop e bad cop estava desde então, apresentado subliminarmente pro espectador depois dessa cena.

Mas, lembremos que ainda é um filme de comédia. K-9 (sigla que significa a palavra CANINO, na pronúncia do inglês “Key” + “Nine”) tem como personagem central, James Belushi. E seria evidente que o roteiro não ia deixar passar momentos de humor e gags divertidíssimas que abrilhantasse o astro. A sequência na praia, onde ele se finge de cego, para que Jerry Lee permanecesse ao seu lado, é impagável. Mas nada que supere o momento em que ele apresenta à Tracy, sua namorada, o novo parceiro canino. A narrativa brinca de forma muito inteligente a construção do ciúme e da rivalidade entre os dois. Ambos “disputam” a atenção da mulher. Para Dooley, Tracy é sua namorada. Para Jerry, a fêmea é sua dona. Logo, o embate entre os dois, desemboca surpreendentemente com Dooley chamando Jerry para uma conversa entre machos: “Olha aqui, ela é minha... e você não vai tomar o meu espaço. A situação é simples, e pode ser bem tribal. Ou você respeita isso, ou vamos ter um problema!”. Não tem como evitar o riso nessas provocações e rixismos concebidos entre os dois no apartamento de Tracy, com direito a trancafiadas em terraços, armários, e até numa briga corporal no chão da cozinha – alguém lembra da mesma “conversa entre homens” no beco, protagonizado por Nick Nolte e Eddie Murphy, em “48hrs”? Mas, Jerry Lee tem sua recompensa quando encontra uma cadelinha branca de focinho depilado, numa das passagens mais legais do filme, ao som de “Oh, Yeah”, da banda Hello, e “I Feel Good”, de James Brown. Essa sequência, que dá início ao terceiro e último ato do filme, apenas entrelaça de forma veemente, o quanto os dois já estão se tornando bons amigos.

O filme se esvai numa narrativa simples e envolvente. O traficante Lyman (Kevin Tighe) quer realizar um milionário carregamento de drogas transportadas no interior de carros, e Michael Dooley que o persegue há dois anos, quer acabar com isso. O fator de tira comum está em todo instante impregnado no personagem de Belushi. O ator fornece ao personagem todos os elementos gaiatos e de quase perdedor que o tira possui. A começar que Dooley tem um joguinho eletrônico (uma espécie de míni-game) que ele nunca consegue ganhar, e o aparelho ainda emite uma sonora e irritante gargalhada quando ele perde. Os monólogos retóricos do personagem, são uma espécie de conversa com ele mesmo, sobre seus erros, suas falhas e de seus fracassos. A entrada do cão em sua vida, por mais rejeitada pessoalmente que fosse, lá no começo, chega para modifica-lo. Dooley é um sujeito de bom coração, mas que visivelmente, não tinha tantos relacionamentos de sucesso. Seus amigos o sacaneiam, seu chefe o detesta e sua namorada admite que o ama, mas que sua vida profissional sempre a colocará em segundo plano, de uma forma ou de outra. Jerry Lee transforma isso, aos poucos! Já no final do filme, quando Dooley sabe que sua namorada foi sequestrada, ele tem uma bonita “conversa” com Jerry, sobre como conheceu Tracy. No interior do seu carro, Dooley reforça o sentimento de que precisava de um amigo, de um ouvinte, de quem mesmo sem entender o que ele fala, pudesse estar ao seu lado olhando pra ele. E seu parceiro canino estava ali... no banco ao lado, como um verdadeiro amigo ouvindo o seu desabafo. E é ainda mais edificante ver como a direção de Daniel faz com que o cão olhe Belushi nos olhos, virando a cara toda hora em que Dooley olha pra ele.

O final assume um tom bem mais sério, quando Michael Dooley e Jerry Lee, vão atrás de Lyman para resgatar Tracy. O diretor Rod Daniel destaca ainda mais o heroísmo do cão, quando o mostra duas vezes em câmera lenta, correndo atrás do caminhão até pegar o motorista, e depois, quando o cachorro persegue o grande vilão, antes de ser baleado pelo mesmo. Nessa hora, não há como não se comover com a grande atuação de James Belushi. Tido para alguns como somente um comediante, o ator consegue transmitir uma visceralidade  emocionante ao ver Jerry Lee ser atingido... o grito que ele dá junto aos tiros que revida em Lyman até a retirada do corpo de Jerry do deserto, é a certeza pro espectador que, entre atritos e conflitos, Dooley reconheceu naquele cachorro tão genioso quanto ele, que nunca teve um parceiro e um amigo mais importante!

A cena do hospital, com uma das montagens mais bem conduzidas num filme do tipo, mostra Jerry Lee numa ala de recuperação com Dooley acreditando que ele estava morto, e por isso, revelando todo o sentimento e carinho que ele tinha para com o cão. Mas, Jerry, já de olhos abertos, finge-se de morto toda vez que Dooley se volta para ele. Mesmo com um sorriso estampado no rosto, não há como o espectador não testemunhar uma grande interpretação de James Belushi (uma das melhores de sua carreira). E, talvez, uma de suas mais passionais. É de fácil emoção quando ele, no hospital, tenta se convencer diante de Tracy, que o cachorro era treinado pra isso, que Jerry Lee era treinado pra levar um tiro. Quando Tracy o abraça, Belushi humanamente desmorona dizendo sob um sincero choro: “Meu Deus, foi muito sangue... ele perdeu muito sangue!”.

E mesmo com uma última visão impagável dentro do Mustang em direção à Las Vegas, fica a prova pro espectador, que K-9 não se trata de um filme dispensável em uma sessão vespertina. Trata-se de uma obra, que mesmo descompromissada, se tornou a melhor representação do melhor Buddy Dog Cop já feito.


quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Impacto Fulminante (Clint Eastwood, 1983)


Sete anos depois da sua última aparição no irregular “Sem Medo da Morte”, o mito Clint Eastwood retorna àquele que sempre foi o pai de todos os tiras durões, o precursor do policial temido e impiedoso: ele volta a encarnar Harry Callahan, o “sujo Harry” como em seu universo ele é conhecido.


Com intervalos médios de 3 anos fazendo o personagem, desde o já clássico “Perseguidor Implacável” de 1971, passando pelo eficiente “Magnum 44” de 1973, até “Sem Medo da Morte” de 1976”, Eastwood dessa vez assume a direção e entrega a segunda melhor aventura do personagem. “Impacto Fulminante” ganha de “Magnum 44” pelo seu teor mais violento, e por uma surpreendente e bem conduzida história paralela à do protagonista, que consegue dar ainda mais escopo à narrativa e, principalmente, ao seu triunfante desfecho.
Dessa vez, Callahan é mandado para fora de São Francisco por ordens de seu Tenente para evitar mais embaraços e polêmicas ao seu método nada convencional de agir contra a bandidagem. E isso fica escancarado nos 15 melhores minutos iniciais da franquia, onde vemos o personagem ser embalsado em toda a sua retaliação e implacabilidade contra os criminosos. Nas mãos de outro diretor, talvez, essa “reapresentação” do protagonista para o grande público tivesse sido mais rápida e diluída para se adentrar logo na trama principal, mas Eastwood é sagaz e sabe que depois de 7 anos longe de seu icônico policial, os fãs avidamente gostariam – e precisariam! – de uma entrada gloriosa aos moldes da essência original do personagem. Aquela que foi forjada na crueza e na truculência de forma magistral pelo lendário Don Siegel, e que Eastwood aqui, consegue trazer de volta à tona. Não por acaso, Harry Callahan surge carrancudo na tela andando em plano americano com seu característico paletó e aqueles mesmos óculos escuros que o personagem usa em “Perseguidor Implacável”.
Exemplo de toda essa ira contida no personagem é mostrado logo nessa ótima abertura do filme, onde temos um playboyzinho sendo absolvido pela Corte por falta de provas. Somado a isso, o réu, mais culpado do que nunca, ironiza e debocha de Harry que se senta numa das cadeiras do Tribunal como espectador, e tem que “engolir a seco” toda a comemoração do bandido. Mas é claro que quem conhece o personagem, sabe que isso não vai ficar barato. E é onde vemos esse acúmulo de ira explodir dentro do elevador do prédio da Justiça, quando Harry pega o playboy pelos colarinhos e diz que “Lugar de merda é no lixo. Pois se deixar no chão, ela seca, e se pisar em cima, ela fede ainda mais”. Jogando o mauricinho de volta ao canto do elevador como se fosse, de fato, uma merda. E isso é exatamente a primeira frase do personagem no filme! E é incrível que esses “quotes” de efeito do protagonista, estão ainda mais ásperos, mordazes e tão agressivos quanto um soco na cara. Aliás, arrisco em dizer que está aí um elemento de “Impacto Fulminante” que é colocado um pouco à frente do clássico filme de 71: todas as rápidas frases de Harry estão ainda mais sujas do que na obra-prima de Siegel. Eastwood entende que Harry Callahan sempre foi implacável, duro e cruel contra seus inimigos, e o diretor/ator vai explorar isso de forma acentuada ao longo das quase 2 horas que o filme tem. Pois ele sabe também que a figura mítica do personagem estará sendo avaliada de forma contundente por todos os fãs de mais de uma década de idolatração. Logo, as frases de efeito ajudam a formar essa aura imponente do sujo Harry.
“Impacto Fulminante” ganha ainda, pela primeira vez, uma ousada adesão para o público feminino: agora, a história principal segue a vingança de uma mulher, que espancada e violentada juntamente de sua irmã mais nova, prometeu a si mesma de matar os seus algozes, um a um. É claro que isso se juntará à trama na qual Harry foi colocado. O roteiro escrito por Joseph Stinson é de longe um dos mais bem encaixados de toda a franquia, pois se por um lado temos uma narrativa de vingança e até de suspense que acompanha a personagem vingativa Jennifer Spencer (a competente Sondra Locke), os fãs continuam tendo toda a violência e as meias-palavras do taciturno Callahan. 
Uma cena fortemente elaborada em cima da truculenta maneira de agir do anti-herói, está no assalto que acontece disfarçadamente dentro da cafeteria que Callahan sempre pede o café. Ao perceber que a garçonete entupiu seu copo de açúcar, ele volta para reclamar; mas é óbvio que Callahan já havia percebido que tinha algo de errado acontecendo no local. E o que vemos em seguida, é para todo e qualquer admirador do personagem aplaudir de pé. Uma cena que, inclusive, referencia o original de Don Siegel, uma vez que Eastwood coloca três marginais baleados no chão sem piedade e acaba dizendo a famosa “Go ahead, make my day!”. Mas é bacana perceber como o roteiro de Stinson, emoldura o ar miticamente heroico e implacável de Harry Callahan, quando o mesmo volta para reclamar do café. Eastwood é esperto em notar que o policial nesse momento está sendo usado como uma figura quase onipresente, um Deus da Punição colocado naquela cafeteria para não prender os marginais, e sim, mata-los. E eis que, quando a câmera rapidamente foca no bandido se espantando ao vê-lo já no interior da cafeteria, uma trilha típica de imponência surge rapidamente para logo se silenciar... já que Callahan iria disparar um de seus melhores comentários: “Todo dia, nesses quase 10 anos que Loretta me serve o café, ela nunca errou a mão. Mas hoje, Loretta me serviu um café frio e tão doce que só foi possível cuspi-lo. Mas logo vejo que Loretta fez isso de propósito, para que eu voltasse aqui e encontrasse vocês... por isso, é melhor largarem as armas agora!”. A frase é dita por Eastwood com uma frieza e ao mesmo tempo uma ironia que só mesmo o ator consegue formular. Uma calma perene que, nitidamente, atinge o assaltante com mais danos do que um tiro. E é engraçado que para um filme de 1983, início dos anos 80, a frase combinaria com qualquer personagem de filmes modernos do Tarantino, onde a jocosidade verbal antes dos disparos fatais, quase sempre acontece. Claro que essas ironias textuais ditas por protagonistas “fodões” iriam se tornar mais comum no decorrer da década com os Slys e os Arnolds da vida... mas é inegável que com Eastwood pronunciando esses letrados sarcasmos, a imponência mesclada à elegância de seu porte, faria o sujo Harry se tornar ainda mais memorável. Basta dizer que, em determinada sequência, Callahan entra na festa de casamento da filha de um mafioso, e simplesmente faz o figurão ter um infarto apenas com suas ácidas e escancaradas palavras; junto ao roteiro de Stinson, é a certeza de Eastwood em mostrar pro espectador que a personalidade de Harry não é só feito pelo “atirar primeiro, e perguntar depois”. Mas sim, por constituir uma persona que consegue eliminar seus inimigos com as verdades que ele sempre atirou. E, caso muitos não lembrem, ele faz a mesma coisa com um advogado público e com seu chefe maior, no primeiro filme da série, quando diz com todos seus pormenores, que não conseguiu salvar uma vítima do Scorpio por causa das incompetentes e travadas burocracias da Justiça. Aqui, no entanto, ele vai à forra... e passa por cima dessas mesmas burocracias e liquida com um criminoso em potencial atirando sobre ele – e de sua família! – insultos completamente respaldados com a verdade!
Harry Callahan merece admiração justamente por essas atitudes. Ele é sim um policial durão, sisudo e completamente de “pavio curto”, na prontidão de mandar qualquer marginal pro inferno, mas o roteiro de Joseph Stinson com a habilidade de Clint na direção, revelam cada detalhe dessa construção de caráter; uma formação de personagem que mesmo desgostoso com todas as mazelas da sociedade, ainda possui uma dignidade em querer limpar as sujeiras que encontra pelo caminho. Seja na bala, ou em suas igualmente mortais palavras. E é interessante vermos como a personagem Jennifer Spencer, que também quer se vingar de alguma forma dessa sociedade – ou de um específico grupo social – podre, se “junta” à Callahan. Numa conversa, até meio que descontraída, na mesa de um bar, ambos têm uma conversa à respeito da sociedade e das leis, do que cada um faz, e do que estão dispostos a fazer. Num rompante instintivo de raiva, a vitimada moça deixa escapar que a Justiça é falha e, que por isso, alguns meios radicais como o “olho por olho”, às vezes, é bem vindo. Ela exemplifica rapidamente delitos corriqueiros que se não consertados, poderão no futuro, eclodir numa avalanche incontrolável. Ela reconhece, acima de tudo, que Harry Callahan é um “mal necessário” dentro dessa questão, o que surpreende o policial. Mas ela diz que poucos ainda agem como ele, e que por isso, ele será uma espécie em extinção. Não demora muito para o espectador perceber que, essa talvez, tenha sido a cantada ideal que alguém poderia dar em Harry... afinal, ele nunca foi um homem de pragmatismos românticos, mas se encontrasse uma mulher que identificasse e elogiasse diretamente os seus modos de agir, ele estaria feliz. E é aí que Eastwood, discretamente, mostra quase que pela primeira vez, Callahan abrir um leve sorriso. Não aqueles sorrisos de ironia ou de instigação para algum desafeto, mas dessa vez, para alguém que assim como ele, compartilha dos mesmos pensamentos e ideais.
Dito isso, a perseguição vingativa de Jennifer Spencer se torna ainda mais intensa à partir do terceiro e último ato, mostrando a bela moça conseguindo eliminar um a um dos seus violentadores – inclusive, no grupo-alvo de Spencer, há uma lésbica valentona tão asquerosa ou até mais do que alguns dos selvagens estupradores. Callahan, paralelamente em sua investigação, se aproxima de achar a verdade e já suspeita de que a matadora que vem eliminando os homens da localidade é a mesma mocinha que ele se deslumbrou. Vale ressaltar aí desse deslumbre de Harry, a primeira “cena de cama” do protagonista... nunca vista em nenhum outro filme da série, é aqui, que vemos de forma inédita, Harry se deitando com uma mulher. Isso fica ainda mais claro para o espectador, quando o roteiro de Joseph Stinson deixa a pista de que Jennifer Spencer pode ser realmente a “mulher perfeita” para Callahan, ainda que isso implique em várias questões que o sujo Harry teria que abdicar. Mas vale também lembrar que em uma cena anterior dessa entrega para a mocinha, o policial havia conversado com um amigo sobre a possibilidade de largar a Polícia de São Francisco, e que mesmo com ressalvas do amigo (“Impossível, afinal, é só isso que você sabe fazer: ser um policial”, nas palavras do parceiro Horace), essa ideia não fica muito longe da realização, uma vez que Callahan sempre foi criticado pelos seus métodos policiais. E por isso, é fascinante que ele diga para Jennifer, que as autoridades para as quais ele serve, “querem sempre resultados, mas não dão os meios para você agir”, numa compreensível indulgência de como ele encara seus próprios atos.

Ao final do filme, toda essa “tour de force” do personagem vem numa carga dramática atípica dentro da franquia. Enquanto Jennifer Spencer compra o parque na qual ela e sua irmã foram violentadas, na intenção de criar ali o derradeiro final para seus inimigos, Callahan é espancado e jogado ao mar pelos três últimos bandidos estupradores de Spencer. Como dito, o drama se acumula e se intensifica tanto na passagem de Harry sendo agora vitimado, quanto na de Jennifer sendo descoberta e pega pelos homens que ela deseja se vingar. Mas o roteiro de Stinson é esperto e consegue deixar o espectador ainda mais agoniado no momento em que ele coloca Callahan caindo ao mar depois do espancamento; temos a certeza que o anti-herói não morrerá, mas não temos a mínima ideia de que ele conseguirá a tempo salvar Jennifer Spencer, que agora está sendo ameaçada de ser estuprada pela segunda vez. 
O roteiro de Stinson provoca ainda mais o espectador pelo sadismo na perseguição dos três bandidos à mocinha, com direito a socos e tapas cruéis em Jennifer. A correria toda acontece dentro do parque em que ela havia comprado para justamente se vingar dos criminosos, mas infelizmente, eles que estão em maior número e são mais fortes, conseguem pegá-la... quando um deles diz assustado: “Cara, olha lá!!!”. Depois dessa exclamação espantada do bandido, é onde a emoção do espectador salta pela boca. Justamente porque entra o poder da direção de Eastwood, junto de sua presença única em cena. O espectador olha junto com os bandidos uma figura na contraluz, posicionada de longe em pé, com uma Magnum na mão. Estático, frio e posicionado como se fosse a personificação exata da morte. E Eastwood tem consciência disso! Ao colocar o espectador sem ver o rosto daquele homem, tal como todos os outros personagens, incluindo Jennifer, mesmo que tenhamos a certeza de que se trata de Callahan, a figura é macabra e representa algo realmente mortal. Repare como a trilha do mestre Lalo Schifrin, solta uns grunhidos e sussurros como algo saindo de um breu fantasmagórico. Eastwood aproveita o cenário aberto do parque, e complementa aquela imagem na penumbra como uma assombração... ainda que esperançosa para Jennifer, mas completamente medonha para os bandidos. E ao olharmos como fica o pavor estampado no semblante do líder do bando, fica ainda mais evidente a satisfação com que Eastwood e o tema de Shifrin evocam... aos primeiros passos de Callahan na direção dos criminosos, e dentro das marcações da música que agora parece dar uma batida como a de um coração acelerando, aquele policial é exatamente a imagem da morte e coloca-lo sem o rosto e na total sombra, é como nos lembrar que a caracterização imagética da Morte personificada, é encapuzada, sem vermos o rosto. E mais um detalhe: enquanto que essa Morte figurativa carrega uma foice, aqui, Callahan carrega seu instrumento mais mortal: a Magnum 44. Emoção mais que perfeita alcançada por um momento da direção brilhante de Clint Eastwood. Afinal, todos se espantam. E o espectador sabe em definitivo, que aquela imagem que caminha não está ali mais para prende-los, e sim, para executar todos. É, sim, a morte personificada em forma de homem. Este, pra mim, é o verdadeiro título do filme: o impacto fulminante é Harry Callahan!
E como sabemos de toda a experiência de Eastwood como ator que já havia trabalhado em westerns consagrados de Sergio Leone, particularmente, acho aqui a primeira investida de homenagem – ainda que meio sutil ou mesmo disfarçada – de um enquadramento do velho cineasta italiano. Repare como Callahan vai se aproximando dos três homens e de como cada um se posiciona em cada canto... algo como bem visto em quase todos os duelos de cowboys de Leone. Sendo que aqui, o cenário arenoso dá lugar ao escuro de um parque fechado. E os pistoleiros são estupradores que detém uma mocinha como refém. E, claro, Callahan é o estranho sem nome que sem mostrar a face, assume o lugar da morte e elimina os dois crápulas. O último, sendo o líder, certamente merecia um final mais condizente com sua megalomania tirânica; e é quando vemos Callahan persegui-lo já dentro da forma de como ele perseguiu Scorpio, ao final de Perseguidor Implacável... inclusive, a “psicopatia histérica” desse estuprador remete aos risos nervosos e a insanidade do antigo vilão Andrew Robinson. Só que troca-se aqui aquela colina numa empreiteira de pedras, por um aclive dentro de um trilho de montanha russa. Mas o final impiedoso é o mesmo. Sendo que aqui, não só Callahan mata o bandido estuprador, como Jennifer Spencer completa sua vingança. Percebemos que quando Harry o elimina com uns 3 tirambaços no peito, o bandido despenca de cima da montanha russa diretamente para o mesmo carrossel em que Jennifer tinha ativado quando entrou no parque... o mesmo carrossel que ela havia tentado se esconder dos meliantes, é o mesmo carrossel que servirá de jazida para o último estuprador. E fica ainda ironia de que, sendo um estuprador, ele morreu com um chifre enfiado dentro dele! O chifre do unicórnio, um dos adereços que compunham o carrossel de Jennifer. No final, ambos o mataram.
Cru, violento e com elementos resgatados por Eastwood, “Impacto Fulminante” se torna uma das melhores aventuras do personagem Dirty Harry. Temos a certeza de que “Perseguidor Impalcável” fez o seu melhor rebento, e que depois daquela obra-prima de Don Siegel, é aqui que Clint mostra o dever de casa completo e finalizado. Um fim tão merecedor como o desfecho de vermos Callahan “salvar” Jennifer da prisão. Afinal, a arma dos assassinatos que ela cometia, acaba sendo direcionada para o líder dos estupradores. E assim, ele dá a sua “prova de amor” a Jennifer, revelada em seu melhor senso de justiça. Tal como ela disse na mesa de um bar, que ele seria uma espécie em extinção, ele prova a ela que, com certeza será.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Águia na cabeça (Paulo Thiago, 1984)


“Putaquepariu, tá pensando que Ballantine’s é cachaça de Itu?”, “vem pra mim, vem, tô morrendo de tesão...”, “quem matar o dragão come o cu da princesa!”, “ah, que que você quer, hein? Já não pago o teu aluguel?” etc, etc. Diálogos como esses são verdadeiros patrimônios de um tipo de cinema que não existe mais no Brasil ideologicamente narcisista de hoje. Ou talvez exista, mas visto sempre sob a já inoportuna e clichê lupa de uma pós-modernidade que arrefece a frontalidade que apenas as narrativas mais cruas e realistas podem conceber. “Águia na cabeça”, pérola que aglutina ecos da marginalidade e do cinema boca-do-lixo, é daquelas obras carregadas de uma base empírica inextricavelmente vinculada a seu tempo, e isso fornece a sua narrativa uma veracidade tal, que chegamos a esquecer seu elenco repleto de rostos conhecidíssimos na tevê. Todos ali aparentam realmente pertencer àquele macrocosmo composto de bicheiros, matadores, políticos corruptos, magnatas, putas e carnavalescos. Todos enredados numa única e irremovível teia, a do benefício mútuo, esse que no Brasil do século XXI explode com cada vez menos reserva e pudor, e arrasta muito mais contingentes sociais em seu cabedal de desgraças. Mas o filme é muito mais do que o simples recorte de uma época.
A narrativa aborda a jornada de César (Nuno Leal Maia), braço direito do senador Ramos Guimarães, um banqueiro que acoberta e apoia a máfia do jogo do bicho no Rio de Janeiro. César ambiciona tomar para si o patrimônio do corrupto político, e não medirá esforços para conseguir o que almeja, mesmo que para isso tenha que manipular duas das mais poderosas facções do tal jogo, colocando-as uma contra a outra. Obviamente essa ardilosa empreitada encontrará muitos obstáculos, pois no fluxo de suas negociatas, César encontra espaço para manter duas relações, com uma dançarina de boate (Christiane Torloni) e com a filha do senador (Xuxa Lopes), com quem o ambicioso rapaz planeja se casar, mais no intuito de preencher o espaço do agora assassinado (por César) senador do que por amor. Na medida em que sua máscara vai se descortinando, a vida de César começa a correr perigo, e é nesse espaço de tempo em que faz de tudo, tanto para lograr êxito em seu plano, quanto para ludibriar sua futura esposa, que a narrativa se concentra.
Observando superficialmente, o personagem de Nuno é revestido de um mau-caratismo meramente arquetípico daquele submundo, o que não é verdade. Em um belíssimo momento, logo depois de trepar com sua amante, César para defronte à janela e desabafa: “quando vim pra Copacabana, fiquei maravilhado com o mar, com o glamour... depois que comecei a compreender o que existe por detrás de tudo isso, Copacabana pra mim se tornou um verdadeiro esgoto. Eu odeio essa cidade. E só vou conseguir sair dessa lama me tornando o dono dela.” Ou seja, na escalada ascensional de César reside um duplo e ambíguo movimento, pois no instante em que atingir o cume mais alto de suas ambições é que conseguirá se emancipar de tudo aquilo que subsiste em sua estrutura. Ele sabe demais, conhece os segredos de muita gente poderosa para abandonar tudo sem que detenha uma hierarquia que o proteja. Cabe dizer que César foi entregue ainda na infância à tutela do senador, a fim de que este o instruísse no mundo das tramoias políticas e formatasse, assim, um fiel escudeiro com quem poderia contar para o resto da vida. Aparentemente apático quanto ao fato de ter assassinado seu tutor, César parece carregar o peso do dano que ocasionou, entrevisto nos momentos em que sua imagem de criança percorrendo o salão da mansão do senador cruza a narrativa como se pertencesse à sua linearidade comum. Essa memória que atravessa algumas cenas sem pedir permissão pode muito bem ser lida como a consciência em frangalhos de César, que precisa manter sua mente equilibrada e reta para que nada saia errado. Há muita coisa em jogo para que um psicológico instável ponha tudo a perder. Daí a impressão de arrogância advinda de suas práticas, pois além de estar lidando com a corja mais perigosa do Rio de Janeiro, também precisa administrar com cautela suas ligações com a imprensa, mais uma instância corrompida.
Um dado extremamente positivo é o fato de em momento algum a narrativa resvalar no moralismo inquisitorial sobre as práticas de César e das organizações criminosas. Paulo Thiago se concentra na narrativa em sua forma mais pura, menos poluída por interferências advindas de esteticismos que pormenorizem a claudicância frontal de sua abordagem. Um exemplo disso reside na personagem de Christiane Torloni, que detém aquele ingênuo sonho de se libertar da vida de dançarina e finalmente ser “alguém”. Ela sabe que César vai se casar com outra, tem noção das tramoias em que ele se envolve, aceita sua condição daquilo que hoje é maldosamente chamado de “mulher-acessório”, mas em momento algum isso é questionado, pelo contrário: a perspectiva da futura ascese de César corresponde para ela a sua libertação daquele mundo. Ela se excita no momento em que César diz que será o rei do Rio, imediatamente pulando para seus braços e mencionando o supracitado “vem pra mim, tô morrendo de tesão”. Uma imagem, para muitos, acintosa, mas de inegável veracidade em contextos sociais de estrutura mais determinista.
Um lugar comum da cinematografia recente busca conjugar a perspectiva de personagens “marginalizados, mas dignos” com uma filtragem etérea – com pretensões escancaradamente poéticas – que arrefecem a crueza do ângulo realista ao ponto de uma aceitabilidade mais ampla e artística – ainda que em muitos casos, ilusória – de suas premissas. O exercício de dignificação da margem se tornou uma das prerrogativas mais recorrentes no cinema brasileiro de 2000 pra cá, daí o olhar compungido e forçosamente elogioso de toda e qualquer manifestação periférica (o patrão é sempre o vilão e o empregado, o bonzinho). Podemos equivaler esse olhar verticalizado à literatura romântica brasileira do século 19, que, em seu desejo de forjar uma base formativa a partir da qual nossa cultura seria erguida, enobrecia com extremo maniqueísmo tudo aquilo que correspondia à nossa terra, já em si um elemento marginalizado. O que alguns autores subsequentes a essa geração perceberam é que, o mau-caratismo, a dubiedade, a vilania, o elitismo em sua pior faceta, etc., são características que atravessam classes sociais – e a esse movimento mais verossímil, a fortuna crítica alcunhou pertinentemente de Realismo. Pois bem, o que vemos no cinema brasileiro é um movimento contrário, e por isso mesmo retroativo no que tange ao estabelecimento de uma maturidade estética dissociada de uma desesperada e pertinaz vontade de agradar o público mais “esclarecido”. O cinema de outrora detinha um poder de choque equivalente ao Realismo. O de hoje, ancorado na idealização de suas margens, se assemelha às concepções românticas.  Daí o insistente cruzamento com vias mais abstratas, pois ao menor contato com certos recursos menos “tangíveis” da nossa realidade, imediatamente uma cadeia de “valorização de obra” é ativada, como se o âmbito de uma estética mais refinada só pudesse ser admitido por vias mais liquefeitas, nunca por uma frontalidade mais enxuta.
Postas estas questões, é coerente afirmar que “Águia na cabeça” pertence a uma estirpe de cinema cuja mola propulsora é um realismo sem filtragens, direto e poderoso. Os admiradores da obsoleta – mas sempre eficaz em certo meio – estética dos “trigais balançando ao vento” certamente se enrubescerão com as cenas de sexo protagonizadas por Nuno e Torloni. O suor emanado por seus corpos, a ofegância, os palavrões, nada ali exala a refinamento estético. Ora, trata-se do recorte natural da realidade de uma trepada em seu estado mais puro, mais isento de pretensões poéticas, e o filme captura a todo instante essa “feiúra” desprovida de suntuosidade operística, e por isso mesmo chocante por sua veracidade. É a foda em seu aspecto fenomenológico, ou seja, provido da ação in loco, e não exegético, contemplado a posteriori. Dificilmente o espectador não se excitará em tais momentos – a cena em que Nuno come Zezé Mota na praia é mais deliciosamente rudimentar ainda – pois nos instala muito mais na posição de voyeurs de um sexo amador cru e real do que de admiradores de seu escopo virtuosístico. Sua ótica centrada unicamente na narrativa, sem pretensões multiangulares, atinge brutalmente o espectador menos preparado para esse tipo de obra, sem intervenções que satisfaçam sua perene – e em muitos casos artificiosa – necessidade de transubstanciar o factível.
Na escala da valorização da arte, a que gera mais possibilidades de leitura é sempre a mais enaltecida. Não há problema algum nisso. Mestres absolutos como Sergio Leone ou Bernardo Bertolucci souberam muito bem haurir de suas obras desdobramentos que só amplificaram a experiência de contemplá-las. Talvez o fator mais problemático seja a constituição de valores irremovivelmente ligados à mera evanescência como emblema contumaz de uma arte que nos ative passivamente o mecanismo da apreciação. A maneira como Thiago explora os personagens sempre os limita ao âmbito expositivo, nunca esgarçando suas composições para além do narrado. Essa opção, se não amplifica nosso olhar para a sempre hipervalorizada polissemia das imagens, por outro nos insere com muito mais potência no plano de um empirismo compatível com nossas práticas cotidianas. Não há um único personagem ali que não exale a essa aura de “gente comum”, que não tem tempo para refletir demais sobre suas ações. A câmera de Thiago em momento algum desterritorializa o olhar dos personagens para além do que está sendo ali vivenciado. Não há “silêncios eloquentes” que os projetem para além de suas ações. Há sim a realidade em seu aspecto mais frugal e direto, sem que se faça da “rotina” um veio estético. É apenas a rotina.
A escolha do elenco é algo que merece menção à parte. Nuno Leal Maia é daqueles atores que funcionam perfeitamente quando o que se exige de suas composições se restringe quase literalmente às práticas mais centradas na vida “exterior” do personagem. Sua compleição de homem comum, atípica pros arquétipos apolíneos do cinema contemporâneo, encampa com veracidade o périplo irrefreável de César, visto pela ótica de uma direção que negligencia um olhar mais apurado sobre seus possíveis desdobramentos psicológicos. Essa abordagem é apenas tangenciada, como já mencionado. E isso é um dado muito positivo, pois é aí que reside a força da composição de Nuno, uma quase não-atuação de tão removida de subliminaridades, de tão enxuta de floreios, sempre focada no pragmatismo textual-narratológico com que empreende seu plano.  Daí César ser um homem de ação, sem muito tempo para refletir sobre perdas e riscos. E daí Nuno hoje ser ator tão subestimado, pois seu modus operandi se contrapõe por completo à falaciosa – porque carregada de pretensões que põe o fio condutor do texto, da ação, em segundo plano – prerrogativa do herói de largo alcance interior, etéreo, plúmbeo, ou das “minorias”.
Jece Valadão interpreta o chefão da máfia mais poderosa de jogo do bicho do Rio de Janeiro. Sua atuação é absolutamente impecável, tanto pelo aspecto verossímil de sua composição, na verdade uma quase elegia de sua mítica de macheza, quanto pelo que ela carrega de anacrônico em seu âmbito historiográfico. Sua voz, seu andar, a imponência com que conduz seu personagem, são quase uma afronta para os padrões comportamentais de uma sociedade que anseia a todo custo pela quebra das demarcações de gênero, por mais que isso não se reflita na prática de um contingente sócio-cultural à margem de tanta elucubração – o mesmo exposto no filme. O homem de Valadão seria apedrejado hoje, pois também voa na contramão do modelo de representação de homem que a sociedade moderna admite. É daqueles que não precisam fazer voz grossa ou berrar incessantes palavrões para mostrar autoridade. Sua fala consegue ser tranquila e imponente, sem que se perceba uma única nesga de artificialismo em sua performance. Veja o caso de Wagner Moura em “Tropa de Elite”, por exemplo. A despeito da poderosa atuação com que forjou seu Capitão Nascimento, sua compleição apolínea precisa ser intermitentemente cruzada com brados efusivos para demarcar aquele modus vivendi. Já em Valadão o endurecimento está empiricamente entranhado em sua fala mansa, despojada de ornamentos que realcem sua rudeza; não há necessidade de didatizar através de berros o que se torna perceptível ao mero contato com seu biótipo: esse é um homem que já vivenciou de tudo na vida, já passou pelo inferno para chegar aonde chegou, e agora usufrui de suas conquistas como quem defende a todo custo uma vida que lhe fora negada. Vive coberto de luxo, sempre recorrendo às práticas sincretistas como forma de se proteger do mau olhado do inimigo, sustenta duas mulheres... E em nenhum momento o filme faz julgamentos moralistas de padrões que fracionam os segmentos sociais, religiosos ou sexuais em suas divisões mais estanques. Quanto a esses aspectos últimos, vejamos a personagem de Zezé Mota: negra, umbandista e amante do chefão. Nenhum desses elementos é tratado com solenidade romântica ou piedosa, simplesmente fazem parte da trama. Três instâncias das chamadas minorias que, a despeito de representarem segmentos que historicamente permaneceram – ou permanecem – à margem dos paradigmas de aceitabilidade em uma sociedade ainda carregada de injustiças, em momento algum são tratadas com olhar indulgente, assistencialista ou solene. Ou seja, em “Águia na cabeça”, o olhar artificioso gerado pela síndrome de enaltecimento romântico das margens do cinema atual é nula, dando espaço para uma visão muito mais realista e despojada desses recortes sociais. A naturalidade com que o filme aborda essas três esferas, exatamente por não enaltecê-las com supostas elegias, por isso mesmo as demarca com muito mais honestidade. Afinal de contas é na abordagem equilibrada dos contingentes que reside a força de uma sociedade mais igualitária, sem que se sublinhe com maniqueísmos politicamente corretos o tratamento ofertado a nenhuma instância.

Não obstante tudo isso, “Águia na cabeça” não deve ser visto mediante comparações com certo edulcoramento do cinema contemporâneo. Deve ser visto sim, como a mais pertinaz e adequada contextualização do subgênero de máfia – aquele que eternizou tantas obras soberbas na Itália, na França e nos EUA – em terra brasilis, agregando a elementos basilares desse segmento aspectos indeléveis e reais da nossa cultura. Doa a quem doer.
Dupla explosiva (Marcello Fondato, 1974)


Poucos filmes transitam no imaginário afetivo com tanta veemência para os que tiveram acesso à fase de ouro das sessões da tarde quanto “Dupla explosiva”, gema deliciosamente anárquica que sintetiza o melhor da vasta filmografia de Bud Spencer e Terence Hill: divergência de personas, humor caipira e nonsense, vilões cretinos e caricatos, sequências gastronômicas, trilha sonora memorável e, óbvio, longas e inverossímeis cenas de pancadaria. Todos esses quesitos são cumpridos com maestria absoluta aqui, sem deixar brechas para gorduras.
Na trama, Hill é o debochado Kid, e Bud, o brutamontes Ben, que numa corrida de rally (muito características das chamadas “comédias proletárias” setentistas), acabam empatando e tendo que disputar entre si o prêmio, um cobiçado “bugre vermelho com capota amarela” (as aspas aqui ressaltam o poder afetivo com que o dito sintagma penetrou no imaginário pop daqueles que, à mera menção do filme, imediatamente completavam: “aquele do bugre vermelho com capota amarela, né?”). Então resolvem competir isoladamente num campeonato de salsichas com cerveja: quem aguentar comer mais levará o dito bugre vermelho com capota amarela para casa.
A partir daí, é um desfile de sequências icônicas que não acaba mais, a começar pelo bando de mafiosos que destroça o bar enquanto a dupla, concentrada única e exclusivamente nas salsichas e nas cervejas, irreleva completamente tudo o que ocorre ao redor: cadeiras voando, vidros quebrando, mesas partindo, pessoas sendo esmurradas, etc. Como não se lembrar do pedido de um milk shake que Terence faz ao barman, ao que Bud interpela: “ei, isso não está nas regras!” e Hill, com aquele saboroso ar de caipira falsamente ingênuo manda: “eu sei, mas é que faz bem pra azia! Experimenta só!”. Ou do instante em que Bud se levanta de sua mesa e imediatamente uma cadeira atravessa o espaço em que estava, ao que Hill pergunta: “vc sabia que iam atirar a cadeira aí?” e Bud: “não, a fumaça do cigarro tava me incomodando”. Tudo muito assim, deliciosamente leve e camp, desaforado e ingênuo. Ambos só começam a dar alguma importância para o evento em questão quando os malfeitores destroçam seu querido bugre, o que será a mola propulsora para o desfile de ações tomadas pela dupla em busca de reparação.
Pode-se mencionar inúmeras outras sequências que o tempo se encarregou de fincar em nosso imaginário afetivo (e as inúmeras reprises do filme nos anos 80 são em parte responsáveis por sua perene aderência), como a batalha de motociclismo – cena essa em que Fondato faz uma pequena homenagem ao passado até então recente de Hill como herói de westerns spaguettis, dando closes à moda Leone nos olhos dos adversários, mas hilariamente cortada pela aparição abrupta de Bud montado numa pequena moto ao som de “Dunny Buggy”, de Oliver Onions (dupla formada pelos irmãos Guido e Maurizio de Angelis, colaboradores oficiais da dupla); a inesquecível luta na academia do circo, em que ambos exercitam todo o manancial cênico em torno do qual sua mítica foi criada: os “telephone hands” e socos verticais de Bud, as acrobacias e o malabarismo com boliches de Terence, etc.; e finalmente, a cena que perdurará nos anais do humor pastelão para todo o sempre: os  la-la-lás cantarolados por um coral, e Bud, completamente desentoado, estragando o ensaio enquanto um franco-atirador mira no gorducho, para desespero de Terence, que tenta de todas as formas avisar ao amigo do perigo que corre.
Não há como destacar um momento específico do filme. Sergio Leone elevou essa prerrogativa – a secção do todo em partes quase autônomas – ao seu estatuto mais nobre. Mas estamos falando de uma obra pop. E uma das bases do pop é a fixidez imagética sem compromisso com texturas pretensiosamente subliminares, isenta de aparatos metalinguísticos que liquefaçam seu poder de aderência. Por mais que se diga o contrário, Andy Warhol não é pop, e sim um escrutinador do pop. O mesmo com Tarantino. Todos eles se munem dessa base irrevogavelmente atrelada ao imaginário coletivo (as comédias proletárias, os filmes de artes marciais B, o western italiano, etc.) para transubstanciar suas camadas de superfície em algo mais. Até o grão-mestre da pavonice cinematográfica Godard quis brincar de noir em seu “Detetive”, de 84.  Na verdade, todos invejam não conseguir atingir aquela carga empírica, direta e tipificada dos filmes de Hill e Spencer. Algo como a diferença entre o frequentador da festa e o repórter que a cobre. Ou o adulto, danosamente consciente de si, que inveja a falta de consciência das crianças. Pérolas como “Dupla explosiva” são puras, solares – porque desativadas de qualquer outro intento se não a diversão passiva – e completamente inconscientes de sua base referencial.
Aqui a imagem de superfície detém um poder de adesão infinitamente superior ao de qualquer possível camada subjacente. Em uma obra do Antonioni, por exemplo, uma explosão não é apenas uma explosão: é necessário compreendê-la, metaforizá-la, etc. Em Hill e Spencer, uma explosão é apenas uma explosão, e isso não é demérito algum, pois a renúncia a qualquer proposta subliminar eleva a imagem em si a um estatuto de importância que não se diluirá polissemicamente. Daí “Dupla explosiva” ser um filme composto por imagens tão icônicas. Daí muito mais citarmos essas cenas em rodas de bar do que as interpretarmos. E se essa mesma imagem em si vier acompanhada pela canção “Dunny Buggy”, dos já citados Oliver Onions, aí o estrago está feito. Poucas músicas na história do cinema conseguem desencadear uma alegria, um alto astral tão tremendo quanto esta, dada a congruência da aura de despojamento contida tanto na letra (“Come with me for fun in my buggy/ Come along let’s go for the hell of it...”) quanto nas imagens ilustradas por ela (as deliciosas cenas de luta, as perseguições de moto, etc.).
Normalmente atrelamos à infância a época mais feliz de nossas vidas porque ali o fenômeno (a intuição, a ação, tal qual preconizado por Husserl) é a base de nossa existência, e não o psicologismo exegético e discursivo, quando começamos a nos observar sob outros ângulos (e desvelamos camadas de nossa personalidade até então submersas), dando início ao nosso sofrimento metafísico, à gravidade (basicamente a partir da adolescência), o que desencadeará uma busca incansável pelo fenômeno puro, aquele que nos ofertou tanta felicidade, no entanto impossível de ser resgatado (daí o uso de artifícios, como álcool e drogas a fim de que essa base fenomenológica venha à tona, desobstruindo nosso superego – nossa interdição –, e nos devolvendo o id – a libertação – que nos fora amputado).
O que tudo isso tem a ver com “Dupla explosiva”? Simples. O filme se situa exatamente nesse campo de associações mais hedonista de nossa formação, perfura brechas para o resgate de uma forma de observar o mundo que já não mais atingimos conscientemente. Reativa a potência do nosso id, aja visto que o mundo se tornou um tanto quanto cínico. Por isso gemas como essa são pautas de mesa de bar de trintões e quarentões cinéfilos, que não se cansam de enumerar cenas específicas. A já citada briga de Hill e Spencer contra os halterofilistas na academia do circo é um desses momentos perenes, daqueles que a mera menção já nos faz entreabrir um sorriso (e como não sentir até uma certa inveja por não sermos nós a estarmos lá, dando sopapos, fazendo malabarismos, disparando piadinhas - “agora não!!”, diz Hill a um vilãozeco de segunda toda vez que esse tenta participar da briga?). Ao final da exibição fica aquela ingrata sensação de retorno à frivolidade do mundo real e por demais pensado.

O cromatismo encanecido e amarelado do filme, também um dado estético que remete às comédias proletárias setentistas, é um fator de obsolescência que tanto aqui quanto em obras congêneres (como “Agarra-me se puderes”, de 77) só tornam mais saboroso seu apelo nostálgico. Mas nada supera a iconicidade da dupla: a mise-en- scène de Hill, sua elasticidade corporal, sua ironia, e a truculência de Bud, seus resmungos, são imagens que carregamos por toda uma vida.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Braddock 2 - O Início da Missão (Lance Hool, 1985)


Ainda que o primeiro filme retrate a guerra do Vietnã sob pontos de intercessão da política americana, trazendo uma visão mais burocrática dentro daquele conflito bélico, é em Braddock 2 – O Início da Missão, que temos de forma explícita, a tensão e o terror daquela guerra vivida e testemunhada do início ao fim. Um trabalho de roteiro e direção, que deixa praticamente de lado as questões politizadas e parte para um campo muito mais agressivo, doloroso e corajoso em muitos aspectos.


Começando de forma direta, ao mostrar um ataque aéreo liderado pelo pelotão de Braddock a um território dominado por vietcongues, o filme não perde tempo em fazer com que os protagonistas de imediato sofram uma avaria no helicóptero tendo que pular em um rio para salvar suas vidas. Todos, sem exceção, recebem o carimbo de “Desaparecido em Serviço”, um registro governamental que o Presidente Ronald Reagan dava aos soldados ainda não encontrados pelo Exército Americano em suas missões de busca. Inclusive, cenas reais de um pronunciamento da Casa Branca e do próprio Reagan, destacam a dor e a expectativa que os familiares desses soldados americanos desaparecidos sofriam na época. Essa interessante introdução, já serve inclusive, para nos apresentar os personagens principais e, lógico, os mocinhos da narrativa; entre eles, o Coronel James Braddock – personagem vivido por Chuck Norris, no auge de sua carreira – um líder militar que não só mostra valentia como demostra um respeito para com todos os membros de sua equipe. Arrisco até em dizer, que o personagem consegue ser um dos mais carismáticos na carreira de Norris, que emoldura o herói como um ser humano também fragilizado, mas que não se permite desistir diante de seus inimigos. Um típico líder de pelotão que, antes de lutar pela sua própria sobrevivência, também lutará para resgatar os seus companheiros.


Essa visão valente de líder nato acompanha o protagonista Braddock em todo o desenvolvimento do filme. Cenas mais fortes de tortura e de humilhação são inseridas de forma contundente em diversas passagens da narrativa, e quase todas promovidas particularmente pelo Coronel Yin, um inimigo com síndrome de Ditador que dominou um vilarejo e que faz de tudo para que o herói Braddock assine um documento para crimes de guerra. Vale destacar precisamente esse vilão feito pelo sul-coreano Soon-Teck Oh, já que o ator consegue exibir de forma até sutil em alguns momentos, toda a crueldade e sadismo de um comandante impiedoso.


Sequências marcantes e inesquecíveis revelam as maldades orquestradas por Yin, como por exemplo, uma “brincadeira” de roleta russa onde ele colocava seus prisioneiros diante de armas sem balas, apenas para se deliciar com o sofrimento daqueles americanos condenados. Ou a maneira que eles tratavam alguns, especificamente, como o soldado Mazilli, que era o piloto de Braddock antes da captura, e que por isso, se mostrava o mais sensível e frágil diante das torturas, já que ele não era um soldado de campo. Há uma perfeita cena que demonstra a crueldade do Coronel Yin e essa fragilidade do soldado Mazilli, quando o sádico ditador pega uma galinha – um animal por qual Mazilli havia se apegado, como estimação -  e a mata torcendo o seu pescoço friamente, para logo em seguida, jogar no covil onde mantinha o piloto trancafiado. E é penoso vermos o quanto Mazilli cai num pranto doloroso e sem forças, ao abraçar aquela ave morta, num claro senso de que até mesmo os últimos elos de humanidade e bondade nas quais ele se agarrava, estavam sendo rompidos por aquele impiedoso inimigo. Mas, talvez, a sequência mais memorável de tortura seja aquela na qual Yin coloca Braddock pendurado e amarrado por uma corda, enquanto um saco é colocado preso em sua cabeça; o detalhe mais vil, é que dentro do saco estava uma ratazana pronta para comer e dilacerar o rosto de Braddock, no que este – para a surpresa de todos os espectadores! – consegue matar o rato da maneira mais suja e brilhante possível.


Mas o filme também aponta momentos não só de dor física, como psicológica e moral. Há detalhes perversos como a tentativa de Yin chantagear Braddock ao mostrar uma carta de sua esposa que supostamente estaria prestes a casar com outro homem. Ou no escárnio e deboche feito pelo personagem François, um piloto francês que transportava ópio e prostitutas para a aldeia, e que humilha um dos prisioneiros ao deixa-lo nu diante das mulheres. Porém, um dos momentos mais pesados seja mesmo a morte de Frankie, um dos amigos e braços-direito do Coronel Braddock, que é tenebrosamente queimado vivo diante do herói do filme, que sem poder fazer nada para impedir tal atrocidade, apenas grita pedindo para que Yin cesse aquele inferno. Talvez, seja aí o ponto que Braddock tenha percebido de que não seria apenas uma questão de fuga com seus amigos prisioneiros, mas sim, uma questão inerente de retaliação! Yin precisava pagar por todos os seus crimes hediondos e desumanos realizados naquele vilarejo... e Braddock estaria pronto para finalmente se vingar.


E ainda que tenhamos inserções mais humanas vindas do personagem Nester – um soldado amigo de Braddock que havia se “aliado” à Yin por um tempo, tentando acordos mais brandos – ou da entrada do fotógrafo que diz estar com uma equipe de salvamento, mas que apenas serve para jogar uma falsa esperança no grupo de condenados, o filme exibe uma crueza e uma polida ao mesmo tempo, típica dos anos 80. E se falta um tecnicismo mais apurado na direção, o roteiro cria uma arrojada maneira de exibir um dos finais mais vingativos nesse gênero de filme. E é justamente onde a direção de Lance Hool, aliado principalmente, ao vigor ainda empolgante de Chuck Norris, fortalecem um clímax de fazer qualquer um vibrar. Vale ressaltar, complementarmente, a edição final do filme que consegue criar uma sequência perspicaz, ao mostrar Yin saindo de seu esconderijo enquanto observamos o helicóptero de resgate escapar da aldeia já destruída. Como se o final já estivesse prestes a acontecer e só esperávamos o fade out escurecer a tela... 


E eis que surge, para o regozijo máximo do espectador que acumulou toda a tensão e raiva nutrida pelo inimigo, um dos desfechos mais honestos com o sentimento de desforra típica – e quase regrada – do espectador: Braddock iria finalmente à forra contra seu algoz. É claro que, como uma figura privilegiada por seus dotes marciais, os roteiristas não deixariam de inserir um combate físico entre os dois coronéis sedentos por uma luta final triunfante. E fica tudo ainda mais extasiante, quando vemos Chuck Norris – sem dublê algum – coreografar todos os seus golpes na cara, no tórax, nas pernas, nos braços e até no fígado(!) do maquiavélico Yin, deixando claro que sua alma finalmente estaria sendo lavada, por todos os amigos que ali foram vitimados.


Braddock 2 – O Início da Missão não se torna o melhor filme dentro do gênero de guerra; até porque ele está mais para um filme de prisioneiros. Mas fica para sempre, a sensação de alívio e vibração transmitidos para os espectadores, que engrandece ainda mais a obra; escapismos esses, corajosos e necessários naquela época, e que hoje, infelizmente estão tão acovardados pelo “politicamente correto” que assola as atuais produções hollywoodianas. E já falando em Hollywood, fica aqui também a certeza de que Chuck Norris, por mais que não fosse um ator imergido em atuações premiadas, conseguia passar toda a honradez e valentia altamente precisa e correta em seus personagens mais icônicos. Norris se desprendia de exaltação ou qualquer outro glamour típico dos seus “rivais” contemporâneos de gênero, e preferia andar na linha mais crua e suja dos Golan-Globus, que sabiam exatamente extrair o melhor do ator. Não à toa, fica difícil imaginarmos um Coronel James Braddock mais polido e enxertado de super produção... e fica ainda mais vigoroso e atraente, vermos que Norris sabia caminhar com personagens mais rústicos e crus. E que por serem exatamente assim, fazia de seu intérprete e personagens, um baluarte do melhor herói sem holofotes.


E, contudo ainda, dentro de toda essa saga do militar perdido na selva, sem sombra de dúvidas,  Braddock 2 conseguiu ser a cereja do bolo e o melhor da trilogia.
 

sábado, 7 de janeiro de 2017

48 Horas (Walter Hill, 1982)



Subgênero maior pertencente à cartilha do filme policial, o buddy movie detém essa primazia por conectar à trama investigativa o sempre típico (mas eficaz) desenrolar de parcerias cujo mote inicial é a adversidade entre a dupla de protagonistas, desde um grau menor de incompatibilidade de gênios (“Tango & Cash”, “Inferno vermelho”, etc.), até o paroxismo de desavenças que, entre si, rivalizam em agressividade com o próprio fio condutor que os une. Nesse quesito último, o clássico da incorreção “48 horas”, de Walter Hill, inquestionavelmente pode configurar no panteão de um dos maiores buddy movies de todos os tempos.
A trama não poderia ser mais simples. Jack Cates (Nick Nolte), tira extremamente agressivo, é obrigado a pedir ajuda ao detento Reggie Hammond (Eddie Murphy, em seu primeiro filme) para investigar o paradeiro de uma dupla de criminosos fugitivos que mataram seu parceiro. E Reggie, por já ter sido membro da mesma quadrilha, acaba sendo sua única chance de achá-los. Até aí tudo bem, mas a gramática do atrito entre o tira branco e o fora da lei negro é elevada a um clima de animosidade até então atípico para as produções do gênero, quase como uma resposta tardia à supremacia negra preconizada pelo cinema blaxpoitation da década anterior. A começar pelo festival de impropérios raciais agressivamente expressos  pelo policial de Nolte, cuja composição esbarra com verossimilhança na linha tênue que separa o mau caratismo da bandidagem, com a qual lida diariamente, da ética do tira incorruptível e intolerante com burocratas de corregedoria. Essas barreiras por vezes são ultrapassadas, dado que a princípio nos impossibilita uma cumplicidade maior com o policial (em certo momento, Cates diz a Hammond: ”Olha só pra você, está usando um terno de 1000 dólares, mas continua parecendo um vagabundo!”, uma nítida afirmação de sua hierarquia sob todos os aspectos, mas principalmente o racial) e nos impele a uma identificação maior com o detento Hammond, mesmo porque a metralhadora verbal de Murphy está mais contida que a de seus filmes posteriores (o que gera uma assimetria enorme entre a truculência do tira e a simpatia gerada por seu prisioneiro).


A narrativa conflui com agilidade a certos terrenos arquetípicos do filme de gênero, mas o faz com tal viço e competência que nunca nos sentimos anestesiados. Um bom exemplo é a sequência em que a dupla cai no tapa, o que já era de se esperar, mas a boa direção de Hill, a ambientação imunda, o desrespeito entre ambos explodindo a cada murro, a cada novo xingamento (Cates, partindo violentamente pra cima de Hammond: “Seu negro sujo!”, e Hammond: “Não me jogue no lixo, seu cretino!”) redimensiona os protocolos dessa gramática a um paradigma refrescantemente atualizado. Temos a impressão de acessar um código novo, quando na verdade já o acessamos bem antes, mas sempre sob o peso de alguma lacuna estética que não potencializasse nosso olhar. E em “48 horas” a releitura desses signos padrões (atrito relacional, investigação, tiroteio final, etc.) é intensificada ao limite a que cada um deles alcança, sem, no entanto, comprometer sua cartilha basilar. Por exemplo, uma discussão entre ambos os protagonistas nunca é pontuada por afrontas genéricas, como “idiota”, “cretino”, etc., mas vinculada a traços injuriosamente segregacionistas (“negro sujo”, “branco nojento”, “vagabundo”, etc.), sendo a maior parte delas vociferadas pelo tira branco. E essa corajosa quebra de uma imediata identificação protocolarmente ética do espectador com o protagonista (que usa e abusa de sua autoridade policial) é uma das características do cinema de Hill, pautado pela rudeza.

O fato de a composição de Cates resvalar em uma verossímil falta de freios morais gera mais impacto se contrastarmos com os edulcorantes tempos de correção em que vivemos, cujas questões raciais são abordadas com extremo cuidado na busca por uma equalização que as escamoteie, mas certa condescendência hipócrita e até assistencialista se observarmos a falta de uma saudável incorreção na composição de grande parte dos personagens negros do cinema atual (razão esta que justifica o declínio da carreira de Eddie Murphy, devidamente abrandado como um comediante família para agradar pais e crianças). Gênios como o Eddie Murphy oitentista ou o Richard Pryor setentista nunca poderiam pertencer ao mundo de hoje, pois a base de sua estética bem humorada era o improviso à moda Actors Studio, a anarquia como forma de afirmação (mais ideológica em Pryor e descompromissada em Murphy) de suas idiossincrasias. Não eram comediantes padrões, como Jerry Lewis. Com a morte de Pryor nos anos 90 e a assunção de Murphy como humorista de gênero concomitante à sua decadência (não à toa um dos seus poucos sucessos dos anos 90 em diante foi o remake de “O professor aloprado”, de Lewis), toda aquela chama subversiva se converteu ou em comédias politicamente corretas como as estreladas pelos então jovens Will Smith e Chris Rock, ou  pontuadas pela grosseria acéfala, à moda irmãos Wayans e Martin Lawrence. Terry Crews talvez seja quem mais se aproxime daquele espírito de incorreção dos anos oitenta, mas mais por sua compleição física do que exatamente por suas performances.

 Como é de praxe em Hollywood, em algum momento a rudeza cede espaço à contemporização, como no mal aproveitado “16 quadras”, de Richard Donner. Só que em “48 horas” mesmo esse mea culpa (já no terço final do filme, diga-se) vem desprovido de glamour, e sua delicadeza é apenas brevemente abarcada no momento em que Hammond pede um dinheiro a Cates para levar uma jovem a um hotel. O tira, já desgostoso com os rumos nada satisfatórios da investigação, mas ao mesmo tempo ciente do valioso auxílio de Hammond, põe a mão no bolso e retira de lá um amontoado de papel amassado (um dado aparentemente pequeno, mas que realça o desapego de Cates com seu modus vivendi), estando o dinheiro entre eles. Meticulosa e gentilmente, Cates desamassa a nota e a entrega a Hammond, não sem antes pedir, de soslaio, desculpas pelos xingamentos. Tudo muito sutil, sem ornamento algum. E fica por aí. A narrativa retoma seu teor visceral de imediato, com as arquetípicas perseguições desembocando na icônica sequência em que Hammond é pego por um dos bandidos e ambos ficam sob a mira da pistola de Cates. É louvável a plasticidade crua com que tanto Hill quanto Nolte configuram a imagem do tira nesse momento, extremante recrudescida por seu cansaço, por seu ódio mortal pelo assassino de seu amigo. A câmera foca em seu olhar já apático, petrificado, e até disposto arriscar a vida de Hammond para pegar o criminoso (uma cena que dialoga com outra similar no início do filme), em um daqueles reprocessamentos de códigos já citados. Na gramática do cinema policial comum, o policial entregaria a arma. Já aqui...

 Há de se elogiar a música urgente e máscula de James Horner, cujos picos se confundem com a octanagem das cenas (confluência nítida no tiroteio na escadaria do hotel, logo no início do filme), assim como a produção dos papas da violência Lawrence Gordon e Joel Silver, que, conduzidos pelo maestro Walter Hill, forjaram o exemplar máximo do cinema de testosterona dos anos oitenta.